Folha de S. Paulo
Brasil tornou-se estranho no ninho, e grupo
já não serve a interesses nacionais
Na superfície, o Brics é um bloco
antiocidental, como Xi Jinping, e Putin mais ainda, pretendem apresentá-lo. De
fato, são coisas diferentes para atores diversos. O Brasil, porém, tornou-se um
estranho no ninho: o grupo já não serve aos interesses nacionais.
Lula vetou, por razões exclusivas de política doméstica (e por enquanto), o ingresso de Venezuela e Nicarágua. Porém, desde a entrada do Irã, na expansão de 2023, o Brics+ iniciou um giro anti-Ocidente. A cúpula de Kazan emitiu convites a 13 novos parceiros, inclusive Belarus, um protetorado informal russo, Cuba e Bolívia, que apoiam a invasão imperial da Ucrânia, além de Vietnã, Cazaquistão e Uzbequistão, situados nas esferas concorrentes de influência chinesa e russa.
Inexiste, contudo, algum tipo de consenso
mínimo na Arca de Noé do Brics+. No comunicado final da cúpula, Putin nem
tentou contrabandear uma sentença de apoio à sua guerra ucraniana. Em busca de
prestígio, o Brasil obteve uma menção à reforma do Conselho de Segurança da
ONU, balão de ar que se choca com o veto chinês ao ingresso da Índia. Os
comunicados do grupo são exercícios na arte de circundar a substância.
A rivalidade estratégica sino-indiana
atravessa o Brics desde o berço. As duas expansões adicionaram as tensões
regionais entre Irã/Arábia Saudita, Turquia/Irã e Egito/Etiópia. A Índia mantém
um tratado nuclear com os EUA. A Turquia, agora Estado-parceiro, faz parte da
Otan. Pirandello escreveu "Seis Personagens em Busca de um Autor"; no
Brics inflacionado, são 22 personagens à procura de um texto.
"Sul Global", atualização do
Terceiro Mundo, é uma miragem. Há 60 anos, o Movimento dos Não Alinhados (NAM),
suposta representação do Terceiro Mundo, também estava permeado por
rivalidades, a principal entre China e Índia, mas assentava-se sobre um
consenso forte: o anticolonialismo. O Brics+ não dispõe de um inimigo tão
evidente quanto as antigas potências coloniais – exceto, talvez, o controle dos
EUA sobre as finanças globais.
Rússia e China nutrem o projeto do Brics
Bridge, um sistema multilateral de pagamentos capaz de circundar o dólar.
Seria, em tese, um propósito comum, estimulado por razões de peso: os custos
financeiros associados à primazia da moeda dos EUA e o interesse de escapar às
sanções comerciais cada vez mais abrangentes impostas por Washington. Falar é
fácil, executar são outros quinhentos. Quem dará crédito a uma cesta de moedas
não-conversíveis? Qual governante inscreveria a economia da Índia na órbita do
Banco Central chinês?
Dezenas de países formam fila para entrar no
Brics+. Para quase todos, o ingresso não acarreta custos ou compromissos. São,
em geral, autocracias à procura de um raio de sol: um clube no qual ninguém
fala em direitos políticos, liberdades públicas ou igualdade perante a lei. No
passado recente, o Brics oferecia ao Brasil a oportunidade de diálogo
privilegiado com potências relevantes na cena mundial. A expansão, que
prosseguirá, diluiu a influência brasileira –e, com as periféricas exceções de
Cuba e Bolívia, excluiu a América Latina do mapa.
Maduro correu a Kazan, infiltrando-se por uma
janela lateral na reunião do grupo. O regime venezuelano tem o que ganhar no
Brics+. O Brasil, não mais.
Sei.
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