segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Eleição municipal reflete a força da democracia no Brasil

O Globo

Sem distúrbios, 156 milhões elegeram prefeitos e vereadores desafiando simplificações sobre eleitorado cindido

Quase 156 milhões de brasileiros tiveram neste domingo a chance de escolher prefeitos e vereadores de 5.569 municípios. De forma ordeira e pacífica, sem nenhum distúrbio notável, eleitores de todas as orientações políticas puderam manifestar suas preferências por meio da instituição mais sagrada da democracia, aquela que a define mais que qualquer outra: o voto livre, secreto, concedido aos candidatos apenas de acordo com a própria consciência.

Mais uma vez, confirmando o pioneirismo e a inovação do sistema eleitoral brasileiro, os resultados foram conhecidos no mesmo dia da eleição. As urnas eletrônicas, alvos de tantos ataques infundados e de uma repugnante campanha difamatória nos últimos ciclos eleitorais, novamente demonstraram por que o Brasil conta com o mecanismo de votação mais avançado do mundo, de acordo com estudiosos do tema. Os resultados que delas saíram ainda serão objeto de análise nos próximos dias, e o segundo turno daqui a três semanas promete novas surpresas. Antes disso, porém, é preciso reservar um momento de alegria para celebrar com orgulho mais uma festa da democracia.

Para trás ficaram — e ficarão ainda mais com o passar dos dias — os casos reprováveis, sobretudo na campanha paulistana, de fraudes, agressões e mendacidade até a undécima hora. A última barbaridade cometida pelo candidato Pablo Marçal (PRTB) foi a publicação de um laudo flagrantemente falso para sustentar a acusação mentirosa de que seu adversário Guilherme Boulos (PSOL) usava drogas. A fraude foi condenada unanimemente pelos demais candidatos. Trata-se de uma indignidade sem precedentes que precisa ser rechaçada, investigada e punida. Atitudes assim não podem ser toleradas. É preciso haver consequências para que não se generalizem. A maioria do eleitorado, madura e bem informada, soube dar sua resposta ao candidato e levou ao segundo turno o atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), e Boulos.

Diante das urnas, os eleitores nas filas que se formavam deram mais uma aula de civilidade que tem muito a ensinar aos candidatos. A voz deles demonstra que o Brasil é um país plural, capaz de desafiar as simplificações que o reduzem a um embate fratricida, polarizado entre direita e esquerda.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) procuraram manter certa distância da campanha, e o êxito de candidatos associados a cada um se deu em geral mais por méritos próprios que em razão do apoio de um ou outro. No Rio, o prefeito Eduardo Paes (PSD) se reelegeu com facilidade no primeiro turno, deixando em segundo plano o apoio de Lula. Em Salvador, Bruno Reis (União) também se reelegeu mantendo o apoio de Bolsonaro longe da campanha. No Recife, João Campos (PSB) foi reeleito em razão de uma administração competente, apoiada por políticos de todos os matizes ideológicos.

As eleições municipais têm uma dinâmica própria que desafia a polarização. Tanto Lula quanto Bolsonaro se revelaram padrinhos menos eficazes do que gostariam. Candidatos alinhados com o centro que fizeram governos bem avaliados, como Paes ou Campos, saíram vitoriosos logo no primeiro turno. O segundo turno ainda pode trazer surpresas, mas o país se mostra insatisfeito com os receituários ideológicos de direita ou esquerda e pode buscar um caminho menos radicalizado no futuro.

Recuo de regimes democráticos continua preocupante no mundo todo

O Globo

Mais de 70% da humanidade vive sob autocracias. Brasil é um dos raros países que melhoraram, diz relatório

O último relatório do instituto sueco V-Dem (Variedades de Democracia), vinculado à Universidade de Gotemburgo, constata o recuo persistente da democracia liberal no planeta no ano passado. As médias caíram aos níveis de 1985. “Desde 2009 — por 15 anos consecutivos — a parcela da população mundial vivendo em países que se autocratizam supera aquela vivendo em países que se democratizam”, afirma o relatório.

No ranking da democracia, Dinamarca e Suécia estão nos dois primeiros lugares; Coreia do Norte e Eritreia, nos dois últimos. Dos 60 países com eleições nacionais neste ano, onde vive metade da população mundial, 30 degradam a democracia, e apenas três — Macedônia do Norte, Maldivas e Tunísia — a fortalecem.

O Brasil ocupa a 32ª posição numa relação de 179 países e merece um capítulo à parte no relatório de 2024, em que é analisado o difícil momento político durante a eleição de 2022. O país aparece como um dos poucos em que os indicadores melhoraram depois de passarem por tendência negativa. “O Brasil mostra a importância de usar eleições como ‘eventos críticos’ para deter a autocratização”, dizem os autores. Ainda assim, eles reconhecem que o país ainda “luta com o legado de polarização na sociedade deixado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro”.

Os 179 países acompanhados pelo V-Dem são divididos, neste último relatório, em 91 democracias e 88 autocracias. Está sob autocracias 71% da população mundial (5,7 bilhões de pessoas), crescimento de 48% nos últimos dez anos — China e Rússia contribuem para esse resultado. Nos regimes classificados como autocracias eleitorais, caso de Turquia ou Hungria, vivem 3,5 bilhões, ou 44% da população mundial. Apenas 29% (2,3 bilhões) habitam democracias eleitorais (categoria em que são classificados Brasil e Argentina) ou democracias liberais (como Estados Unidos, Canadá e países europeus).

Na América Latina, continente onde 86% vivem em democracias eleitorais, apenas Chile e Uruguai, países com apenas 4% dos latino-americanos, são considerados democracias liberais. Cuba, Nicarágua e Venezuela recebem a devida qualificação de autocracias.

A censura à imprensa é um de 20 indicadores usados para qualificar regimes políticos. A censura aos meios de comunicação tornou-se mais dura nos últimos dez anos em 45 países. É o caso de El Salvador, do populista e autocrata Nayib Bukele, e da Índia, onde o governo do primeiro-ministro Narendra Modi tem usado leis sobre sedição, difamação e terrorismo para perseguir inimigos políticos. O assédio a jornalistas tem aumentado em 36 países.

O relatório do V-Dem é um alerta para os democratas de todo o mundo, em particular do Brasil. É consistente a recuperação democrática depois dos riscos trazidos pelo governo Bolsonaro (a população brasileira responde por mais da metade do contingente global para o qual indicadores melhoraram). Mas o recuo da democracia no resto do mundo mostra que é sempre preciso estar atento. Não se pode relaxar na vigilância contra candidatos a autocrata.

Consumo de petróleo cai, mas conflitos põem em risco a oferta

Valor Econômico

Cotações certamente explodiriam caso o Irã revidasse com o fechamento do Estreito de Ormuz

A ampliação da ofensiva de Israel no sul do Líbano contra o Hezbollah e a retaliação do Irã pela morte de comandantes do grupo xiita aliado de Teerã interromperam a calmaria nos preços do petróleo, que haviam caído em setembro para abaixo dos US$ 70. A invasão a Gaza não foi suficiente para causar sobressaltos no preço. O revide iraniano, com uma chuva de duas centenas de mísseis sobre território israelense, levou o barril do Brent a subir entre 8% e 10% na semana, ainda assim uma reação bem mais moderada do que a esperada em um momento em que uma conflagração geral no Oriente Médio pareceu muito próxima. Os mercados, e não só o do petróleo - dólar e ouro não acusam nervosismo nem fortes oscilações -, continuam a se mover seguindo os fundamentos. O que pode mudar este jogo é o próximo capítulo das hostilidades - a reação de Israel ao Irã, caso a decisão seja um ataque à infraestrutura de energia iraniana.

A desaceleração da economia e a consequente redução da demanda estão forçando um rearranjo no mercado de petróleo. O principal fator para isso é a queda do consumo chinês. Da redução de 800 mil barris/dia estimada em agosto pela Agência Internacional de Energia, pelo menos 280 mil barris se devem à retração chinesa, que ocorre pelo quarto mês consecutivo. O recuo da economia chinesa é concomitante à menor atividade nos Estados Unidos e uma recuperação ainda tímida dos países da zona do euro. No ano, o consumo está dois milhões de barris/dia menor do que o do nível anterior à pandemia. Foi esse cenário que levou as cotações do tipo Brent para baixo, em uma queda de US$ 20 em relação às de abril.

Os maiores atores do mercado começaram a mudar de atitude com o deslocamento dos preços. Desde novembro de 2022, os países da Opep+, o cartel do petróleo, com a Arábia Saudita à frente, resolveram reduzir sua produção em 5,3 milhões de barris/dia, pouco mais de 5% da oferta global, para sustentar as cotações. Para financiar seus multibilionários projetos de reforma econômica, os sauditas tinham como alvo a cotação de US$ 100 o barril, que se frustrou. Com a contenção de produção do cartel, os países de fora dele, como os Estados Unidos, o maior produtor do mundo, o Canadá, o Brasil e a Guiana, ampliaram a oferta em 1,5 milhão de barris/dia.

Enquanto a Arábia Saudita diminuiu em 2 milhões de barris sua produção diária, para 9 milhões de barris, a menor desde 2011 (salvo durante a pandemia da Covid e depois de um ataque a suas refinarias em 2019), aliados do cartel, como Rússia e Cazaquistão, e mesmo membros, como Iraque, não cumpriram suas cotas e despejaram mais petróleo nos mercados. Diante das pressões internas e externas ao cartel, a Arábia Saudita decidiu há poucos dias que a partir de 1 de dezembro voltará a aumentar a oferta, começando com 83 mil barris/dia até culminar com elevação de 1 milhão de barris em dezembro de 2025.

A ação dos sauditas impedirá que outros países ganhem fatias de mercado a suas custas, mas terá um efeito baixista sobre as cotações. Boa parte do represamento do fornecimento do cartel foi anulado pela queda da demanda e pelo aumento da produção, o que trouxe uma disponibilidade adicional equivalente a 3,5 milhões de barris/dia. Depois da decisão, porém, a guerra de Israel contra o Hamas e o Hezbollah recrudesceu ao ponto em que a destruição da capacidade de produzir e escoar petróleo no Irã passou a ser cogitada pelos estrategistas israelenses.

Os mercados especulam sobre quais seriam os efeitos desses ataques e as possíveis reações do Irã a eles. Se a produção iraniana, de 3,4 milhões de barris/dia, fosse totalmente retirada do mercado, os outros países do cartel teriam como substituí-la, pois contam com capacidade ociosa. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos têm disponibilidade para elevar sua produção em até 5 milhões de barris/diários. Mas as cotações certamente explodiriam caso o Irã revidasse com o fechamento do Estreito de Ormuz, impedindo não só o fluxo de sua produção para o exterior, como a de boa parte da Arábia Saudita. Seria uma segunda rota vital para o comércio de petróleo obstruída em menos de dois anos.

Os houthis, aliados do Irã, em conflito com a Arábia Saudita, fazem ataques no Estreito de Bab El Mandeb, na ponta do Mar Vermelho, o que retirou da rota dos cargueiros o Canal de Suez. Por ela passavam 15% do comércio global (não só óleo) e 30% da carga em contêineres. Os navios se desviaram desse caminho e aumentaram em média em 9% o percurso. Os fretes da Ásia para a Costa Oeste do EUA até fevereiro haviam subido 130% desde novembro. A rota Xangai-Roterdã, com desvio pelo Cabo da Boa Esperança, elevou os custos do transporte em 35% (Valor, 4 de outubro).

A disseminação do conflito pelo Oriente Médio não impediu a queda da demanda, também impulsionada pelo avanço das energias verdes, mas pode repentinamente estrangular grande parte da oferta de petróleo. Na crise financeira de 2008, o preço do barril do tipo Brent chegou ao recorde de US$ 148,50. As cotações iriam buscar esse teto se o óleo deixasse de fluir do Oriente Médio.

Nunes e Boulos têm chance de melhorar debate em SP

Folha de S. Paulo

Em disputa acirrada, prevaleceram os candidatos mais experimentados; Marçal vê aventura radical rejeitada pelo eleitor

Em um dos primeiros turnos mais acirrados das eleições paulistanas, prevaleceram, por margem minúscula, os dois candidatos mais experimentados e que reuniram maior estrutura política em torno de si. Nesse sentido, o êxito de Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL) eleva o grau de normalidade da disputa.

Boulos é a aposta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para ocupar o vácuo à esquerda deixado pelo esvaziamento de lideranças petistas na cidade. Chega pela segunda vez ao segundo turno, tendo sido derrotado por Bruno Covas (PSDB) há quatro anos.

Na campanha, mostrou dificuldades para herdar os votos de seu padrinho político entre os estratos mais pobres e afastou-se de bandeiras de seu partido.

Nunes, que chegou à prefeitura com a morte de Covas, articulou um poderoso bloco de apoio —do centro à direita bolsonarista— à sua candidatura, aí incluídos o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e, de modo menos convicto, o próprio Jair Bolsonaro (PL). Valeu-se também de uma máquina pública com raro volume de dinheiro em caixa.

Sai do páreo a grande surpresa das eleições municipais deste ano, o autointitulado ex-coach Pablo Marçal, que no nanico PRTB nem mesmo dispôs de tempo de propaganda oficial. Ainda assim, usou com desenvoltura redes sociais, entrevistas e debates para dividir o eleitorado bolsonarista com sua coleção de provocações, mentiras e calúnias.

De todo modo, Marçal, que pode enfrentar problemas judiciais por seu comportamento, evidenciou a existência de um expressivo contingente de direita no eleitorado paulistano.

Na competição que remanesce, o prefeito, ao menos em tese, larga como favorito. Conta, afinal, com taxa de rejeição consideravelmente inferior à do adversário; tende a herdar a ampla maioria dos votos de Marçal e pode obter boa parcela dos de Tabata Amaral (PSB), a quarta colocada.

Parece inevitável que o embate entre Nunes e Boulos reproduza, em grande medida, a polarização entre petistas e bolsonaristas que marca a política nacional desde 2018. É de esperar que os padrinhos políticos de ambos se enfrentem de modo mais aberto na arena municipal a partir de agora.

Sem as arruaças do ex-coach, no entanto, abre-se oportunidade preciosa, ao longo das próximas três semanas, para a discussão mais aprofundada das prioridades da metrópole.

Na primeira etapa da campanha, Nunes aproveitou sua enorme vantagem em tempo de propaganda de rádio e televisão para exaltar seus feitos na prefeitura, sem contraponto das mesmas dimensões. Ainda assim, sua gestão não obteve mais do que índices modestos de aprovação nas pesquisas do Datafolha.

Agora, os dois candidatos dividirão tanto o tempo dos programas de rádio e TV quanto o dos debates, o que —espera-se— tende a enriquecer o cotejo de programas de governo.

Saldo nas transações com o mundo inspira cuidados

Folha de S. Paulo

Embora confortáveis, contas externas não estão imunes ao ímpeto gastador do governo; déficit assume tendência de alta

Com a sólida posição de reservas cambiais, de US$ 369 bilhões, e déficit ainda modesto nas transações de bens e serviços com o restante do mundo, as contas externas do país não são fator de instabilidade.

De fato, mesmo com a queda nos preços das matérias-primas e a demanda interna que eleva importações, o saldo comercial está positivo em US$ 48,4 bilhões de janeiro a agosto deste ano.

Para 2024, projeta-se resultado acima de US$ 80 bilhões, menos que os US$ 92,3 bilhões de 2023, mas ainda assim uma cifra importante para fazer frente a outras rubricas deficitárias.

Nestas, há um rombo de US$ 78,8 bilhões. Estão nesse cálculo as chamada rendas primárias, como remessas para pagamento de juros e dividendos, além de outros serviços variados, como aluguel de equipamentos, propriedade intelectual e, cada vez mais, os chamados usos recreativos, como as bets.

No conjunto da balança comercial com rendas e serviços, resta um déficit nas contas correntes de US$ 30,4 bilhões até agosto, ante US$ 13,5 bilhões no mesmo período de 2023. Com tendência de alta até o fim de dezembro, analistas esperam que se atinja algo em torno de US$ 40 bilhões, ou cerca de 2% do PIB.

O rombo ainda é razoável, mas cabe o alerta de que a tendência não parece ser favorável. Problemas de financiamento podem se agravar caso haja necessidade de obter valores maiores do que 4% do Produto Interno Bruto.

As exportações devem continuar elevadas, com expansão da produção e das vendas de petróleo, grãos e minérios. Entretanto as importações têm crescido mais neste ano, dado o descontrole do gasto público, que amplia a demanda interna.

Historicamente os principais itens negativos eram as saídas para remuneração de investidores estrangeiros no país, na forma de juros e dividendos. Tais contas geram saldo negativo de cerca de US$ 49 bilhões em 2024, mas com relativa estabilidade.

O foco de atenção agora são as remessas de certos serviços. Só neste ano, são US$ 14,7 bilhões para criptomoedas e itens recreativos, como streaming digital.

Por ora, o país recebe grande fluxo de investimentos diretos (US$ 51,2 bilhões no ano). Mas a maior facilidade para realizar investimentos em outros países também deve ampliar remessas de brasileiros nos próximos anos.

O ponto-chave é que o país não deve se pautar pela relativa tranquilidade externa, já que os fluxos podem se deteriorar rapidamente, ainda mais se houver incerteza na gestão econômica interna.

São Paulo respira aliviada

O Estado de S. Paulo

Com o delinquente Marçal fora do páreo, espera-se que a disputa pela Prefeitura entre Nunes e Boulos seja mais civilizada. Rejeição ao ‘coach’ é um bálsamo para os genuínos democratas

Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL) vão disputar o segundo turno da eleição para a Prefeitura de São Paulo. A delinquência que marcou a campanha de Pablo Marçal foi rejeitada pela maioria dos eleitores paulistanos, um triunfo da decência sobre a infâmia e da civilidade sobre a barbárie política. A derrota de um desqualificado como Marçal é uma vitória da democracia contra aquele que revelou ser um de seus mais insolentes agressores. Assim há de ser celebrada pelos democratas de corpo e alma em todo o País.

O fracasso eleitoral do sr. Marçal, todavia, não significa que ele esteja livre de responder pela pletora de crimes eleitorais e possíveis crimes comuns que cometeu ao longo desta que foi a campanha mais violenta de que São Paulo teve notícia em sua história recente. Assim como a eventual vitória do tal coach não o exoneraria da obrigação de prestar contas de seus atos à Justiça, sua derrota tampouco tem esse condão absolutório. Marçal é um corpo estranho à democracia e deve ser contido pelo melhor instrumento de defesa do regime democrático: a supremacia da lei.

Mas agora o que importa para o futuro de São Paulo é que o destino de Marçal passou a ser assunto do Ministério Público e do Poder Judiciário, e não mais da política. A capital paulista, enfim, respira aliviada. Em três semanas, os paulistanos voltarão às urnas para escolher seu futuro prefeito entre dois candidatos que são muito diferentes entre si em termos ideológicos e programáticos, mas que jamais ameaçaram o processo eleitoral e, principalmente, a democracia.

Com um delinquente como Marçal fora do páreo, este jornal espera que a disputa entre Nunes e Boulos possa ser travada em termos mais civilizados e quiçá propositivos. Foi assim em 2020 e agora nada impede que o seja novamente. A metrópole tem muitos problemas crônicos na oferta de serviços públicos de saúde, educação, zeladoria urbana e transportes, mas o debate em torno das propostas de soluções para esses problemas foi coadjuvante ao longo de uma campanha na qual o que pareceu ser mais relevante foi a desqualificação de adversários nos termos mais baixos, sem falar no absoluto desrespeito aos eleitores, disputados a tapa, literalmente, como se fossem meros autômatos seguidores de redes sociais.

A rejeição de Marçal nas urnas, portanto, é um bálsamo para os que acreditam, como o Estadão acredita, que a política não apenas é necessária, como constitui o único meio de concertação civilizada entre os interesses e visões para a cidade e para o País por vezes conflitantes no seio da sociedade. É incontrastável o fato de que a política dita tradicional tem falhado em atender aos anseios mais prementes dos brasileiros, em boa medida pelo alheamento dos caciques partidários ao melhor interesse público. Dignos da confiança dos eleitores, porém, são os que verdadeiramente se mostram dispostos a aprimorar a política, seja qual for a sua afiliação ideológica e partidária, e não a destruí-la, como era o caso de Marçal.

A campanha do coach, como restou notório, jamais disfarçou seu tom marginal, muito pelo contrário. Marçal abusou da agressão física e moral contra seus adversários como uma estratégia eleitoral. Contudo, sua retórica “antissistema”, a rejeição às instituições políticas tradicionais e a tentativa de se colocar acima das regras do jogo democrático, felizmente, não convenceram a maioria dos eleitores paulistanos. A consagração pelas urnas dessa metodologia marginal legitimaria um comportamento que atenta contra os princípios básicos da representação política, a começar pela negação do diálogo e pelo desprezo pelas leis escritas e não escritas que sustentam a convivência pacífica e o progresso social de qualquer nação civilizada.

São Paulo exige daqueles que se dispõem a administrá-la um compromisso inescapável com a gestão pública responsável. As demandas da maior e mais rica cidade do País jamais seriam atendidas por improvisos ou “experimentos” aventureiros.

Uma aula de Gonet a Dias Toffoli

O Estado de S. Paulo

Ao recorrer de mais uma decisão que anula processos da Lava Jato, procurador-geral ensina que não se tratam de forma igual coisas diferentes e que sentença exige fundamentação robusta

O procurador-geral da República, Paulo Gonet, deu uma aula ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli. Em um recurso apresentado contra decisão de anular mais processos da extinta Operação Lava Jato, Gonet recapitulou tópicos de Direito que podem, digamos assim, ter sido esquecidos ou passado despercebidos pelo magistrado ao longo de sua formação, que, espera-se, lhe conferiu notável saber jurídico.

Toffoli vem errando há bastante tempo, mas o caso que motivou a explanação de Gonet envolve a recente canetada em favor de Raul Schmidt Felippe Júnior, apontado como operador de propinas a servidores da Petrobras. Em mais uma decisão monocrática, o ministro anulou ações e investigações sob um alegado “conluio” na força-tarefa de Curitiba.

A defesa de Felippe Júnior pediu a extensão de decisões do ministro que beneficiaram o presidente Lula da Silva e o empresário Marcelo Odebrecht. Desde setembro de 2023, quando se deu início ao chamado “efeito Toffoli” com anulação de ações e condenações em cascata, réus confessos enfileiram-se à espera da impunidade. Já foram beneficiados o empreiteiro da OAS Léo Pinheiro e o casal de marqueteiros João Santana e Mônica Moura. Para piorar, as decisões se baseiam em provas obtidas por meios ilegais.

Gonet explicou didaticamente ao ministro seus equívocos, ao que tudo indica, para persuadi-lo a exarar, enfim, uma decisão correta. Recomenda-se que Toffoli tome nota dos ensinamentos contidos em apenas onze páginas.

O primeiro deles é que não se tratam de forma igual situações diferentes. Gonet ensinou a Toffoli que “estender uma decisão significa repetir a decisão para outra pessoa” e, por óbvio, “não se repete decisão para casos que não sejam iguais”. O procurador-geral mostrou que o caso concreto de Felippe Júnior “não atende ao requisito da aderência estrita”, necessário para que as decisões de Lula e Marcelo Odebrecht lhe fossem estendidas. Isso já bastaria para a rejeição do pedido.

Sem uma relação direta entre os casos, o STF, ao estender decisões de nulidade, corre o risco de invadir outras instâncias, “desviando-se do caminho imposto pelo princípio do juiz natural, que assinala à Corte atuação em grau de recurso”. Desse modo, caberia a um juiz competente decidir caso a caso se as provas foram contaminadas ou não a ponto de declarar a nulidade de um processo, e esse juiz não é Toffoli.

Gonet rememorou, ainda, que o fundamento para que Lula fosse beneficiado pelo ministro diz respeito à atuação dos responsáveis pela condução da Lava Jato no Paraná. Ocorre que houve desdobramentos da operação em diversas instâncias e em diversos Estados, o que, decerto, não permite a extensão automática de nulidades, como vem fazendo Toffoli.

Diante disso, o procurador-geral afirmou que “o desfazimento de atos processuais de forma indiscriminada, sem individualização dos atos contaminados”, não coaduna com o Direito Processual. Isso tudo tem acarretado, nas palavras de Gonet, “entraves indevidos à persecução penal”, além de dificultar o trabalho do Ministério Público de investigar e responsabilizar culpados por malfeitos. Para Gonet, “a anulação de provas”, sobretudo em crimes contra órgãos públicos, “exige fundamentação robusta”.

É importante que Toffoli atente a essa lição, haja vista que uma decisão judicial se fundamenta no Direito, e não na política. Isso quer dizer que não são argumentos robustos, por exemplo, a afirmação de que a prisão de Lula da Silva foi “um dos maiores erros judiciários da história”, “uma armação fruto de um projeto de poder” ou “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”.

No caso concreto de Felippe Júnior, Gonet pediu que Toffoli volte atrás e reconsidere sua decisão. Caso o ministro não queira se corrigir, o procurador-geral solicitou o envio do caso ao plenário do STF para que seus pares de toga debatam a questão de forma colegiada, como este jornal reiteradamente apela.

Oxalá essa aula de reforço de Gonet tenha sido bastante proveitosa. De posse de conhecimento, espera-se que Toffoli faça o dever de casa.

Nova farra dos precatórios

O Estado de S. Paulo

Sem alarde, Senado aprova PEC para empurrar dívidas municipais e premiar má gestão pública

Passou pelo Senado sem alarde uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para limitar o pagamento de precatórios, refinanciar dívidas previdenciárias e desvincular receitas de municípios em apuros financeiros, além de ajudar o governo Lula da Silva a anabolizar sua agenda verde por meio de fundos públicos, com a inclusão de um enorme jabuti. A aprovação se deu no mesmo dia em que a Casa chancelou a renegociação das dívidas dos Estados. Todo mundo saiu ganhando, menos as contas públicas.

De autoria do senador Jader Barbalho (MDB-PA) e relatada por Carlos Portinho (PL-RJ), a proposta apresentada em 2023 recebeu o aval do Senado em agosto sem nenhum voto contrário. Agora, esse novo prêmio à má gestão pública aguarda a análise da Câmara.

Sob a justificativa de oferecer maior flexibilidade orçamentária às prefeituras, o texto é um pacote de bondades. E o que mais chama a atenção é a autorização para empurrar os precatórios – as dívidas com cidadãos e empresas reconhecidas pela Justiça. Parece que alertas do Supremo Tribunal Federal (STF), que já reiterou a necessidade de quitação de precatórios, não têm surtido efeito. Vale lembrar, por exemplo, que a Corte autorizou o atual governo a pagar essas dívidas após a mal-ajambrada iniciativa do governo Jair Bolsonaro de adiar precatórios da União para turbinar gastos sociais em ano de eleição.

A nova PEC estabelece uma escalonamento para limitar o pagamento dos precatórios em relação à receita corrente líquida (RCL) do município, a depender do estoque. Com isso, os credores poderão ser penalizados e esperar mais tempo para receber, financiando, na prática, os governos locais.

Ao que tudo indica, os senadores acharam oportuno repetir erros passados, e o calote virou regra para reforçar o caixa de aliados. E tudo isso se deu numa bela concertação. Segundo Portinho, em seu relatório, o texto “é resultado de um frutífero diálogo e de uma profícua construção conduzida por este Senado Federal, pelo Poder Executivo e pelas entidades representativas dos municípios”.

Deve ser por isso que o governo Lula sai agraciado, ao poder destinar até 25% dos superávits financeiros de fundos públicos a financiamentos de projetos de transformação ecológica e de enfrentamento à mitigação e adaptação à mudança do clima, contornando o arcabouço fiscal e sem impactar despesas. Um ganho e tanto para um governo fracassado na área.

Mas nem tudo está perdido. A PEC estende aos servidores de municípios, Estados e Distrito Federal as mesmas regras dos servidores federais, corrigindo um erro da reforma da Previdência de Bolsonaro. O saldo, contudo, é muito negativo, com uma espécie de louvação à incompetência ou à irresponsabilidade.

Não é de hoje que municípios arrastam precatórios. Emendas constitucionais na última década já estenderam o prazo para zerar estoques por três vezes. Agora surge mais uma benesse, e ninguém garante que outras não virão. Os congressistas parecem ignorar que administradores levianos estrangulam seus orçamentos. A Câmara pode corrigir isso.

A cidadania vai além das eleições

Correio Braziliense

A partir de janeiro do ano que vem, cabe aos eleitores verificarem se as propostas de campanha estão sendo cumpridas. Também é preciso ficar atento às manobras e às conexões, uma vez que as articulações que acontecem nos gabinetes resultam em projetos de lei

Cumprido ontem o dever cívico de ir às urnas eletrônicas nas eleições municipais em todo o país — para quem não precisa voltar e mesmo para quem vai retornar no próximo dia 27, no caso das cidades com segundo turno para a escolha do prefeito —, o papel do cidadão segue fundamental, uma vez que ele é o titular do processo e deve participar diariamente das ações políticas que determinam as diretrizes das cidades. A Constituição Federal estabelece que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio dos eleitos.

A partir de janeiro do ano que vem, cabe aos eleitores verificarem se as propostas de campanha estão sendo cumpridas. Também é preciso ficar atento às manobras e às conexões, uma vez que as articulações que acontecem nos gabinetes resultam em projetos de lei. Não se pode registrar o voto e deixar a gestão da cidade com os vereadores, o prefeito e o vice. Eles são os nossos representantes e, como tal, precisam ser fiscalizados e cobrados.

Com a tecnologia hoje disponível, é possível verificar, em páginas de instituições, gastos efetuados e o destino dado a recursos, por exemplo. Consultas a sites de transparências podem apontar indícios e práticas irregulares. Essas dúvidas devem ser encaminhadas ao Ministério Público (MP), órgão incumbido de averiguar.

Em suas comunidades, bairros e regiões, pode-se criar comitês para identificar os problemas e as maiores necessidades de suas localidades. Assim, os moradores conseguem resolver aquela velha demanda de que, passada a eleição, os candidatos "somem". Organizados e atuantes, os cidadãos têm todo o direito de ir às câmaras municipais e prefeituras exigir as soluções para as questões que são da alçada dos vereadores e do prefeito.

Mas isso requer movimento por parte dos eleitores. Referendo, plebiscito e iniciativa popular, quando os moradores participam diretamente da lei, são ferramentas disponíveis. O comparecimento em audiências públicas é outra oportunidade indispensável para acompanhar e debater os assuntos em tramitação. Os conselhos também são uma possibilidade para os cidadãos ocuparem o espaço que devem no meio político.

O voto é parte essencial da democracia, mas ela não se encerra nele. Precisa ser cuidada e vigiada no dia a dia. Em defesa de sua própria soberania, os brasileiros têm de fiscalizar a conduta de quem é eleito, além de verificar se as aspirações da população estão sendo atendidas e as promessas de campanhas cumpridas.


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