O Globo
Não é saudável ficar dependendo de elefantes
como a Enel. Não funcionam nem investem o necessário
O curso dos acontecimentos é cruel. Passaram
os incêndios no Brasil, a dor lancinante em Gaza se estendeu
ao Líbano,
quase não se fala nela, e, agora, o apagão na maior metrópole do país passará
rápido também. Como também estou passando e passarei, não hesito em abordar
esse tema.
Estava em São Paulo na noite de sexta, 11 de outubro, quando caiu a tempestade. Na manhã de sábado, fui pegar para viajar uma pessoa que passara por uma cirurgia: ela estava com as malas tentando descer as escadas de um prédio sem luz. Pensei nessa contradição: uma cidade com grandes hospitais e medicina avançada, mas com um serviço de energia vagabundo. Confesso que já vi apagões em Boa Vista, quando dependiam da energia da Venezuela, e comentei aquele longo apagão de Macapá, que, por sinal, definiu as eleições de 2020 contra o governo.
Não me interessa muito o empurra-empurra
sobre a culpa. Nem as oscilações cosméticas na burocracia reguladora. O que
parece absurdo é o fato de estarmos diante de mudanças
climáticas: novas tempestades virão; com elas, ventos que varrem a
cidade, inundações, talvez. E quase não se fala em saídas de longo prazo, em
adaptação aos novos tempos, que já chegaram e nos colheram de calças na mão.
Soube que, em 2009, foi aprovada uma lei para
aterrar os fios. Mas, ao que tudo indica, essa lei não pegou. É uma saída cara,
talvez nem tanto quanto os prejuízos do apagão que, nos cinco primeiros dias,
somavam R$ 1,5 bilhão. Descentralizar a produção de energia, também não ocorre.
O presidente George W. Bush, na sua época, quem diria, lançou um projeto para
financiar painéis solares nas casas. Isso poderia ser feito em São Paulo com o
estímulo de redução no IPTU. Não é saudável ficar dependendo de elefantes como
a Enel. Não funcionam nem investem o necessário para manter a qualidade do
serviço.
Cada vez mais entendo a falência dos partidos
políticos, inclusive os da esquerda. Estes tiveram um alento quando olharam um
pouco mais longe da luta de classes e viram as lutas identitárias. Mas a
fórmula já não corresponde à nova realidade. As lutas identitárias se
desgastaram com o rigor do politicamente correto, com as lacrações. Conforme
ressaltou Mark Lilla, num livro que mencionei aqui, a vitória de Trump em 2016
já foi um aviso: as lutas identitárias sozinhas não sustentam uma campanha
política nacional.
Assim como se ampliou em certo momento a
ideia das classes sociais, hoje é preciso renovar. No meu entender, o passo a
ser dado é reconhecer não apenas uma sociedade de classes, mas uma sociedade de
riscos, onde os pobres se expõem muito mais. Essa é uma ideia do sociólogo
Ulrich Beck, que já morreu, mas deixou uma teoria sobre a metamorfose do mundo,
indicando que era preciso uma nova luz para entender a realidade.
O espaço é curto para expor tudo. Mas, se os
partidos adotassem a visão de sociedade de riscos, não iriam para a porta de
fábrica, como fizemos no passado. Eles precisam ir para a periferia, organizar
não só as lutas elementares, mas principalmente a autodefesa da população
diante dos eventos extremos cada vez mais frequentes. Em outras palavras, é
preciso deduzir estratégia a partir do fato dominante que são as mudanças
climáticas. Na verdade, elas ocupam hoje muita atenção: debates, conferências,
viagens, teses e seminários. Mas falta quem arregace as mangas e vá trabalhar
na realidade cotidiana a transição necessária.
Secas, incêndios, tempestades, tufões e
apagões são a consequência dos novos tempos. A política não só ainda não
descobriu essa realidade, como não se adaptou a ela para orientar a adaptação
da própria sociedade. Caminhamos nas trevas, como diz o texto bíblico. O apagão
na maior cidade do Brasil é o tipo de mensagem que não pode ser esquecida.
Embora, como quase tudo que acontece, daqui a pouco também vai para a gaveta
dos acontecimentos passados. Pelo menos, até que uma nova tempestade nos
sacuda.
Eu morro de medo de tempestade,Senhor!
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