sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Flávia Oliveira - Um canto carioca

O Globo

É lição de solidariedade, política de saúde bem planejada, empenho de servidores públicos

O Rio de Janeiro inteiro, dor e delícia, tragédia e compaixão, coube na saga de dona Maria Elena Gouveia por um fígado. Moradora de Belford Roxo, 69 anos, ela foi diagnosticada com câncer e doença hepática grave. Recebeu indicação para transplante e aguardava, havia três meses, como primeira da fila. A ligação redentora veio na noite de segunda-feira, 30 de setembro. O protocolo exige deslocamento imediato para o hospital.

No caso de dona Maria Elena, a cirurgia seria realizada no Hospital Adventista Silvestre, em Santa Teresa, área central da capital, distante 40 quilômetros do município onde mora, na Baixada Fluminense. A paciente deveria chegar no início da madrugada na unidade de saúde, mas só conseguiu se apresentar depois do amanhecer de terça-feira, 1º de outubro. Uma troca de tiros na região a impediu de sair de casa. Belford Roxo registrou, de janeiro a agosto deste ano, 120 mortes violentas, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ). No primeiro semestre, o Instituto Fogo Cruzado contou 269 tiroteios na Baixada.

Não é por acaso que segurança pública ocupa o topo das prioridades dos eleitores do Rio de Janeiro neste 2024. Para porções inteiras do território da capital e da Região Metropolitana, o direito de ir e vir é interrompido pelos confrontos de grupos civis armados — tráfico e milícia — entre si e com a polícia. Por pouco, o fígado que caberia à dona Maria Elena não foi para o segundo da fila.

O Sistema Nacional de Transplantes é uma das joias da política social brasileira. O país tem o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, informa o Ministério da Saúde. O SUS financia 88% das operações. Até ontem, a lista de espera somava 44.645 pessoas; seis em dez são homens. Cerca de 41 mil precisam de um rim; 2.304 de fígado, como dona Maria Elena; 431 de um coração. 

A oferta de órgãos é sempre muito inferior à necessidade. Por isso, cada doador que aparece impõe uma corrida contra o tempo. O doador do fígado de dona Maria Elena era um homem de 55 anos, morador do Espírito Santo, cuja morte cerebral foi decretada na segunda-feira. A família, generosa no luto, concordou com a retirada dos órgãos.

De avião, o fígado chegou ao Rio pelo Galeão, onde um veículo da Secretaria Municipal de Saúde já esperava. Saiu escoltado por motocicletas da Polícia Militar. O caso acabou se tornando público, porque a Linha Vermelha, uma das artérias fundamentais de ligação entre capital e Baixada, teve de ser interditada. A via onde tantas vezes o tráfego é interrompido pelo caos no trânsito, por acidentes, à bala, parou para o fígado de um capixaba chegar a tempo de ser transplantado na moradora de Belford Roxo.

A paciente já estava internada quando o órgão chegou ao hospital, em Santa Teresa. A cirurgia começou por volta das 9h, durou quatro horas e foi bem-sucedida. Dona Maria Elena saiu da sala de cirurgia consciente e estável, informou o médico Eduardo Fernandes, chefe da equipe de transplantes.

No Espírito Santo, o jornal A Gazeta encontrou a filha do doador. Maiana Guerra, trancista, moradora de Maruípe, soube por uma amiga, via aplicativo de mensagens, que o fígado do pai tinha parado uma via expressa do Rio:

— Quando vi, fui às lágrimas. Percebi que era verdade, consegui ficar feliz durante meu luto. É alguém que não conheço, mas que tem uma parte do meu pai — disse ao repórter Alberto Borém.

Foi Maiana quem assinou a doação dos órgãos do pai. Paulo César Guerra, lavador de carros no município de Serra, sofreu morte encefálica em decorrência de um AVC. Deixou quatro filhos e dois netos. Hoje vive em dona Maria Elena. Ao “Bom Dia Rio”, emocionado, o filho dela, Nilton Gouveia Araújo, disse que quer fazer o mesmo por outra família:

— Tudo mudou. Agora quero ser um doador, a mesma pessoa que doou para minha mãe. Quero ser um também.

Às vésperas do primeiro turno da eleição municipal, o conto da vida real que aproximou, por um fígado, os brasileiros Paulo César e Maria Elena é lição de solidariedade, política de saúde bem planejada, empenho de servidores públicos. Ensina que a população é sábia quando põe segurança, saúde e mobilidade no topo de direitos a ser assegurados. Deve orientar Suas Excelências, os candidatos, a trabalhar pelo melhor. Somos capazes.

Um bom voto no domingo.

*Morreu quase esquecido, ontem, Roberto Saturnino Braga, ex-prefeito do Rio, um dos melhores senadores que o estado já elegeu. Seu exemplo de ética, transparência e coerência como homem público deveria inspirar os que almejam cadeiras nas quais se sentou.

*Cid Moreira foi a voz de uma era do telejornalismo. Marcou gerações de brasileiros com seu solene, grave e inconfundível “Boa noite”. Será lembrado.

 

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