O Globo
É lição de solidariedade, política de saúde
bem planejada, empenho de servidores públicos
O Rio de Janeiro inteiro, dor e delícia,
tragédia e compaixão, coube na saga de dona Maria Elena Gouveia por um fígado.
Moradora de Belford Roxo, 69 anos, ela foi diagnosticada com câncer e doença
hepática grave. Recebeu indicação para transplante e aguardava, havia três
meses, como primeira da fila. A ligação redentora veio na noite de
segunda-feira, 30 de setembro. O protocolo exige deslocamento imediato para o
hospital.
No caso de dona Maria Elena, a cirurgia seria realizada no Hospital Adventista Silvestre, em Santa Teresa, área central da capital, distante 40 quilômetros do município onde mora, na Baixada Fluminense. A paciente deveria chegar no início da madrugada na unidade de saúde, mas só conseguiu se apresentar depois do amanhecer de terça-feira, 1º de outubro. Uma troca de tiros na região a impediu de sair de casa. Belford Roxo registrou, de janeiro a agosto deste ano, 120 mortes violentas, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ). No primeiro semestre, o Instituto Fogo Cruzado contou 269 tiroteios na Baixada.
Não é por acaso que segurança pública ocupa o
topo das prioridades dos eleitores do Rio de Janeiro neste 2024. Para porções
inteiras do território da capital e da Região Metropolitana, o direito de ir e
vir é interrompido pelos confrontos de grupos civis armados — tráfico e milícia
— entre si e com a polícia. Por pouco, o fígado que caberia à dona Maria Elena
não foi para o segundo da fila.
O Sistema Nacional de Transplantes é uma das
joias da política social brasileira. O país tem o maior programa público de
transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, informa o Ministério da
Saúde. O SUS financia 88% das operações. Até ontem, a lista de espera somava
44.645 pessoas; seis em dez são homens. Cerca de 41 mil precisam de um rim;
2.304 de fígado, como dona Maria Elena; 431 de um coração.
A oferta de órgãos é sempre muito inferior à
necessidade. Por isso, cada doador que aparece impõe uma corrida contra o
tempo. O doador do fígado de dona Maria Elena era um homem de 55 anos, morador
do Espírito
Santo, cuja morte cerebral foi decretada na segunda-feira. A
família, generosa no luto, concordou com a retirada dos órgãos.
De avião, o fígado chegou ao Rio pelo Galeão,
onde um veículo da Secretaria Municipal de Saúde já esperava. Saiu escoltado
por motocicletas da Polícia
Militar. O caso acabou se tornando público, porque a Linha Vermelha,
uma das artérias fundamentais de ligação entre capital e Baixada, teve de ser
interditada. A via onde tantas vezes o tráfego é interrompido pelo caos no
trânsito, por acidentes, à bala, parou para o fígado de um capixaba chegar a
tempo de ser transplantado na moradora de Belford Roxo.
A paciente já estava internada quando o órgão
chegou ao hospital, em Santa Teresa. A cirurgia começou por volta das 9h, durou
quatro horas e foi bem-sucedida. Dona Maria Elena saiu da sala de cirurgia
consciente e estável, informou o médico Eduardo Fernandes, chefe da equipe de
transplantes.
No Espírito Santo, o jornal A Gazeta
encontrou a filha do doador. Maiana Guerra, trancista, moradora de Maruípe,
soube por uma amiga, via aplicativo de mensagens, que o fígado do pai tinha
parado uma via expressa do Rio:
— Quando vi, fui às lágrimas. Percebi que era
verdade, consegui ficar feliz durante meu luto. É alguém que não conheço, mas
que tem uma parte do meu pai — disse ao repórter Alberto Borém.
Foi Maiana quem assinou a doação dos órgãos
do pai. Paulo César Guerra, lavador de carros no município de Serra, sofreu
morte encefálica em decorrência de um AVC. Deixou quatro filhos e dois netos.
Hoje vive em dona Maria Elena. Ao “Bom Dia Rio”, emocionado, o filho dela,
Nilton Gouveia Araújo, disse que quer fazer o mesmo por outra família:
— Tudo mudou. Agora quero ser um doador, a
mesma pessoa que doou para minha mãe. Quero ser um também.
Às vésperas do primeiro turno da eleição
municipal, o conto da vida real que aproximou, por um fígado, os brasileiros
Paulo César e Maria Elena é lição de solidariedade, política de saúde bem
planejada, empenho de servidores públicos. Ensina que a população é sábia
quando põe segurança, saúde e mobilidade no topo de direitos a ser assegurados.
Deve orientar Suas Excelências, os candidatos, a trabalhar pelo melhor. Somos
capazes.
Um bom voto no domingo.
*Morreu quase esquecido, ontem, Roberto
Saturnino Braga, ex-prefeito do Rio, um dos melhores senadores que o estado já
elegeu. Seu exemplo de ética, transparência e coerência como homem público
deveria inspirar os que almejam cadeiras nas quais se sentou.
*Cid Moreira foi a voz de uma era do
telejornalismo. Marcou gerações de brasileiros com seu solene, grave e
inconfundível “Boa noite”. Será lembrado.
A saúde é o bem mais precioso da vida.
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