Folha de S. Paulo
Impossível não reconhecer que o BRICS+ possa
ser outra coisa além de instrumento da ascensão da China
A reunião do BRICS+
em Kazan, na Rússia,
significa coisas diferentes para cada um dos participantes. É o primeiro
encontro para o Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos,
cuja inclusão explica o acréscimo do símbolo + ao acrônimo do grupo original.
Para o autocrata Putin é ocasião de mostrar que não está politicamente só,
embora não possa por os pés nos países, como o Brasil, que reconhecem a
jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI), o qual o condenou por crimes
contra a humanidade perpetrados na Ucrânia. Já para a China trata-se
de mais um tijolo na construção de um amplo suporte para sua liderança
internacional em confronto com o Ocidente democrático.
Para o Brasil, que assume a presidência do bloco por um ano, trata-se de mostrar com clareza sua posição em face das mudanças da ordem política mundial – um desafio e tanto.
Com limitados recursos de poder para influir
sozinho nas decisões mundiais, de há muito Brasília advoga a reforma dos
organismos multilaterais para torná-los mais acessíveis às nações em
desenvolvimento, reduzindo a iniquidade da ordem global afiançada pelos Estados
Unidos. Voltado para esse alvo, sempre buscou aliados e formou coalizões.
Participar da criação do BRICS, em 2009, decorreu dessa postura reformista.
Mas as circunstâncias mudaram. O que, desde o
início, era assimetria de dinamismo econômico entre a China e os demais países
do bloco transformou-se em clara desigualdade de poder no seu interior. Nesse
processo, foi adaptando seu propósito inicial aos desígnios do sócio
majoritário. Impossível ignorar que dificilmente o BRICS+ -- e mais ainda o
BRICS++ que se anuncia com o ingresso de novos membros patrocinados pela China
-- possa ser outra coisa além de instrumento da nova potência em ascensão.
Por outro lado, uma foto oficial da reunião
de Kazan decerto mostrará que a maioria dos membros desse clube em franca
expansão faz parte de outro colegiado informal que a jornalista polonesa Anne
Applebaum denominou "Autocracia S.A.", no livro em que descreve as
redes tecidas mundialmente por ditadores como Putin, Xi Jinpin e outros menos
famosos. À exceção do Brasil e – apesar dos pesares – da Índia e da África do
Sul, onde a democracia continua em pé, todos os membros do BRICS+, bem como os
novos aspirantes, são países sob governo autoritário.
O critério democrático não rege a política
externa de nenhuma nação; o regime político não impede o comércio entre países;
não determina inversões externas, muito menos o convívio nas organizações
multilaterais. De mais a mais, democracias sobrevivem graças à fortaleza de
suas instituições e à vigilância cívica de suas sociedades. Mas a pressão
internacional também ajuda. E não há dúvida de que o fortalecimento das
autocracias no mundo cria ambiente mais adverso à garantia das liberdades em
cada país. Assim, reforçar um bloco onde predominam as ditaduras não é isento
de consequências.
Participar dos BRICS+ ao tempo em que marca
sua autonomia ante a China e seu compromisso com a defesa dos valores e
instituições da democracia que o Ocidente criou vai exigir do Brasil muita
imaginação diplomática.
Verdade.
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