quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O acordo sobre o ajuste fiscal - Míriam Leitão

O Globo

As medidas de cortes de gastos do governo estão na avaliação jurídica antes do anúncio. Uma tarefa árdua num orçamento tão engessado

O acordo interno do governo sobre as medidas fiscais tem mais relevância do que parece. Normalmente, em qualquer governo, há visões diferentes de onde se esteja. Nesse, a Casa Civil quer mais investimento para viabilizar o PAC e a Fazenda quer reforçar o arcabouço fiscal. Os dois ministérios chegaram em entendimento sobre isso e agora é redação, avaliação jurídica e anúncio. A estratégia para abreviar o tempo no Congresso será apensar as medidas a alguma proposta de emenda constitucional que esteja tramitando. O que se fala no governo é que a dinâmica dos gastos obrigatórios tem que ser compatível com os limites do arcabouço fiscal. Isso é bem difícil.

O arcabouço permite um crescimento de despesas, mas com limites estreitos. Elas podem subir acima da inflação dentro de uma banda de 0,6% a 2,5%, e apenas 70% da alta real das receitas. É dupla trava. O economista Samuel Pessoa diz que o arcabouço foi bem recebido quando foi votado, mas todo mundo viu que havia inconsistências. Uma delas é exatamente o que é mais caro para o presidente Lula.

—A regra de indexação dos benefícios ao salário mínimo é incompatível com o arcabouço porque ele eleva o custo das políticas públicas vinculadas ao salário mínimo a uma velocidade maior do que o limite. Entende-se perfeitamente o desejo do presidente Lula de dar aumento real ao salário mínimo, ele deseja que o ganho de produtividade da sociedade seja compartilhado com os trabalhadores de baixa renda. Mas a indexação dos benefícios ao salário mínimo, que está tendo aumento real, gera crescimento das despesas públicas a uma velocidade insustentável. Há outra inconsistência. Os gastos de saúde e educação crescem 100% da receita corrente líquida.

Não é fácil a vida de quem quer fazer ajuste fiscal. Há pressões de cada ministério setorial, há desejos do governo de ter a gestão aprovada pela população, há mudanças do país que impactam principalmente os gastos com a previdência. O orçamento é engessado. Existem mínimos constitucionais para saúde e educação. Como resolver essa equação tem sido o tormento de todo governo que tenta a sério ajustar as contas públicas. O ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet têm tentado seriamente. Antes de tudo, tiveram que consertar os estragos do vale-tudo eleitoral que foi a política econômica de 2022.

A dívida pública está alta e subindo, o déficit a alimenta, tanto quanto os juros altos. Reduzir a Selic, sem queda da inflação, pode ter efeito bumerangue porque alimenta a desconfiança, a inflação e contrata juros mais altos e elevação do risco. Por isso, a solução é ajuste das despesas, mas quando os economistas bradam “cortem os gastos” são poucos os que saberiam dizer exatamente onde cortar se estivessem no governo, dadas as limitações constitucionais que existem. É uma construção árdua de consensos técnicos e políticos para se avançar em qualquer reforma na estrutura dos gastos públicos no Brasil. Em entrevista na porta da Fazenda, o ministro Fernando Haddad confirmou que está na fase final da preparação das medidas.

— O meu trabalho é esse, tentar entregar a melhor redação possível para que haja compreensão do Congresso e nós possamos sair desse redemoinho que não faz sentido à luz dos indicadores econômicos do Brasil.

Ontem mesmo saiu o dado do Caged de criação de 248 mil vagas em setembro, a PNAD do IBGE deve mostrar hoje nova queda da taxa de desemprego para 6,5%. E o PIB está crescendo ao ritmo de 3%, acima do esperado pelo segundo ano consecutivo.

O problema é que a inflação não dará sinais de alívio nos próximos meses, exceto na conta de luz. O petróleo está caindo, mas seu efeito é anulado pela alta do dólar. A inflação de outubro deve vir em 0,51%, segundo a LCA. A consultoria projeta em 4,7% em 12 meses devido à alta dos alimentos. O item mais delicado, alimentação no domicílio deve ficar acima de 1% em cada um dos três meses finais do ano, e deve fechar o ano, segundo a MB Agro em 7,6%. A queda do preço da carne já foi completamente revertida este ano, em que o item subiu forte pelo fim do ciclo do boi, que havia beneficiado o consumidor no ano passado. Tudo isso cria esse quadro de economia com boas notícias sim, mas com pontos de preocupação e essa real necessidade de ajuste fiscal para fortalecer o marco fiscal.

 

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