quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O recado das urnas para a esquerda - Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Se fossem seriamente escutados, quem sabe esses eleitores não responderiam?

As semanas seguintes às eleições costumam ser momentos de avaliações sobre perdas e ganhos na política institucional, além de oportunidade para compreender o estado atual da correlação de forças no cenário político. Isso é natural, afinal, mandatos permanecem uma medida objetiva de força política. As urnas sempre transmitem mensagens importantes e cabe aos interessados decifrá-las com precisão para, então, tomar as devidas providências.

Vamos por partes. Quero me concentrar hoje em um aspecto específico da mensagem que a esquerda recebeu nas eleições municipais: sua relação com uma parte significativa dos eleitores parece ter se perdido de vez.

Deixando de lado as habituais transferências de responsabilidade que esse setor político adora fazer —culpa das emendas parlamentares, da "normalização" das candidaturas aberrantes, do antipetismo promovido pela mídia etc.—, apenas os fanáticos resistem a aceitar algumas obviedades reveladas pelas urnas: esta eleição confirma que, em 2022, quem se elegeu foi Lula, não a esquerda; apesar de seu tamanho, Lula já não é a sombra do "grande eleitor" de ciclos eleitorais passados; quando o PT se alia a outro partido de esquerda, como em São Paulo, não expande o eleitorado, mas o reduz; a relação da esquerda com os pobres azedou de vez; não convence mais ninguém uma retórica eleitoral baseada na crítica à "elite fascista", na ironia depreciativa com o "pobre de direita", nos apelos de "corram para salvar a democracia" e nas acusações identitárias de racismo, machismo e homo e transfobia.

Além disso, esgotou-se o valor explicativo das derrotas da esquerda e do avanço da extrema direita com base na suposição de que a maioria dos eleitores apresenta problemas morais (são conservadores ou fascistas) ou cognitivos (são ignorantes, manipulados por fake news ou enganados).

O PSDB e vários analistas do Sudeste passaram os primeiros 15 anos deste século rejeitando a ideia de que a parte do Brasil que preferia o PT aos tucanos tinha alguma razão válida para isso. Simplesmente não parecia razoável. Nesse período, proliferaram hipóteses de falhas morais ou cognitivas reproduzidas na mídia. Dizia-se que o IDH explicava tudo: quem come três refeições por dia vota racionalmente, quem tem déficit proteico age irracionalmente. Falava-se em diferença entre avanço e atraso. Mainardi sustentou essa posição até há pouco tempo: "O Nordeste sempre foi retrógrado, sempre foi governista, sempre foi bovino, sempre foi subalterno em relação ao poder (...), região atrasada, pouco educada".

Essas ideias foram ilustradas com mapas dos "dois Brasis", separados pela linha de Capricórnio, com o Brasil temperado votando com razão e o tropical, por fome, ignorância e mando. Afinal, se Higienópolis tem um voto razoável, que diverge do voto de Xique-Xique ou Cabrobó, já sabemos para que lado pende a desrazão. Nunca entenderam nada das razões dos outros porque partiam do pressuposto de que os outros não tinham razão.

Agora, a esquerda adota a mesma postura de negar que qualquer voto seja tão racional quanto outro. Afinal, se o pobre e o negro são objetos de tão transbordante amor, que loucura é essa de não nos amar de volta? A não ser que se tenham perdido de vez, com a alma corrompida pelo fascismo, o coração levado pelo capitalismo, a mente possuída por pastores, pela desinformação e pelos algoritmos das plataformas.

Talvez a esquerda pudesse captar o recado das urnas e avançar nas explicações sobre sua nova condição se abandonasse as categorias que usa para justificar a rejeição dos seus ex-eleitores. Afinal, conservadorismo não é um defeito moral nem uma postura antidemocrática; ninguém é fascista só por rejeitar progressistas e seus valores; e quem vota de maneira distinta apenas tem razões diferentes, mas ainda assim são razões. Em vez de perguntas enviesadas, como "por que galinhas votam em raposas?" ou "que contradição é essa, um ‘pobre de direita’?", que só podem chegar a diagnósticos de patologias, a esquerda deveria simplesmente perguntar, olhos nos olhos, aos que não votam mais nela: "Você está melhor sem mim?".

Quem sabe, se fossem seriamente escutados em vez de simplesmente desconsiderados como incapazes de discernimento ou como neofascistas, esses eleitores não responderiam? Mas então seria necessário aceitar que grupos socialmente vulneráveis têm discernimento, que fazem escolhas deliberadas, ponderando alternativas e considerando valores. Igualzinho a todo mundo.

 

2 comentários:

  1. Perfeito !

    Se não estiver muito enganado, suponho que a maioria de nós deseja, no plano local, que os postos de saúde funcionem, que exista iluminação pública adequada, que as mães que trabalham tenham creches para seus filhos, segurança e transportes públicos decentes e tudo mais que caiba às esferas municipal e estadual. No plano nacional, que a inflação esteja sob controle, que exista emprego e condições para que cada um desenvolva suas próprias potencialidades da melhor forma possível.

    Neste contexto mais geral, como as ditas forças do espectro político, se mais à chamada direita, esquerda ou " centro ", vão atuar em busca da melhoria da vida das pessoas, isso faz parte da dinâmica de interesses e forças em jogo.

    O que, aparentemente, parcela da esquerda ainda não assimilou, ou não quer assimilar, é que suas utopias são suas e, não, necessariamente, as do sujeito comum.

    Este é um dos pontos apresentados pelo colunista: parcela da chamada elite " pensante ", de esquerda, acredita-se, ainda, como a porta-voz dos anseios das " massas ", como condutora dos destinos do " povo ", em busca de alguma forma de redenção dos " injustiçados "; vê-se como a guardiã dos direitos dos mais " fracos e oprimidos ". Legítimo. Porém, o modelo de sociedade ou paraíso na Terra que essa elite projeta é o mesmo que o tal sujeito comum imagina ou deseja? Ou será que esse sujeito não é capaz de pensar e agir por si próprio?

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  2. Excelentes, tanto o texto do colunista quanto o comentário acima.

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