quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Federação é pacto e não ilhas - Fernando Abrucio

Valor Econômico

O Brasil precisa urgentemente da institucionalidade e fortalecimento do SUSP na segurança pública, bem como da criação um sistema nacional com articulação intergovernamental na política de mudança climática

Dos principais e mais complexos problemas brasileiros, dois são centrais e não têm ainda uma governança mínima para seu tratamento: a segurança pública e a mudança climática. Em outras questões fundamentais, como a saúde, a educação e o combate à desigualdade social, certamente há muitas tarefas a realizar. Porém, tais setores já construíram políticas governamentais com avanços importantes e, sobretudo, sistemas básicos que os organizam. Em todos esses casos, as soluções passam inexoravelmente pela estrutura federativa. Se o país quiser lidar melhor com os desafios do século XXI, seus líderes terão de entender para que serve uma federação.

Os debates recentes sobre mudança climática e segurança pública revelam que muitas lideranças com postos elevados na República brasileira não compreenderam ainda o significado do federalismo. A palavra federação vem do latim “foedus”, cujo significado etimológico é pacto. Foi com essa ideia que no final do século XVIII os federalistas americanos criaram um novo experimento político que buscava garantir a autonomia e as liberdades locais e, ao mesmo tempo, construir uma nação governada por uma interdependência equilibrada entre as partes territoriais.

Os pactos que organizam as federações pelo mundo são distintos conforme a situação territorial e a trajetória histórica desses países. Há federalismos mais descentralizados na distribuição do poder, e outros com perfil mais centralizado. Mas há algo em comum: cada vez mais é necessário garantir a articulação e a integração intergovernamentais para enfrentar problemas que não podem ser solucionados por apenas um ente federativo, seja a União, os estados ou os governos locais.

O caso brasileiro tem uma trajetória político-territorial bastante atribulada, contendo um duplo legado negativo. De um lado, um viés centralizador muito forte, presente desde o Império, mas cujas expressões mais fortes vieram do longo período de Vargas até o final do regime militar. De outro, uma tradição localista e fragmentadora que perpassa toda a história. Já avançamos em relação a essa herança, mas os fantasmas do presidencialismo imperial e do coronelismo isolacionista continuam rondando nossos líderes políticos.

O modelo federativo inaugurado pela Constituição de 1988 gerou uma série de pactos territoriais em torno de problemas ou políticas públicas, todos construídos com participação dos entes federativos. Óbvio que havia, em maior ou menor grau, alguma assimetria, dado o maior poder do governo federal e a grande dispersão de governos locais, a maioria com baixas capacidades estatais.

Mesmo assim, foi montado um federalismo cooperativo que deu base ao SUS, um paradigma universalista de política de saúde num país extremamente desigual. Sua trajetória contém muitos sucessos, o maior deles a salvação do Brasil frente à sandice bolsonarista. Também dessa concepção federativa vieram êxitos na educação e no combate à desigualdade social, como se pode perceber comparando a grande maioria dos dados da situação brasileira na década de 1980 com os indicadores atuais. As questões que permanecem com pouca resolutividade são exatamente políticas cuja governança tem sido incapaz de lidar com a federação.

A segurança pública é um cipoal de políticas dispersas e descoordenadas ao longo do território nacional. Fragmentação é o nome do jogo federativo que impera neste setor. Fenômeno que já começa com a divisão das duas polícias no plano estadual, que vai ficar ainda mais desorganizado com o crescimento das guardas municipais e, como corolário, estrutura-se num terreno sem interligação com as forças policiais federais.

Em poucas palavras, a segurança pública é uma verdadeira Babel, cujo maior perdedor é o cidadão, principalmente a camada mais pobre - com destaque para o morticínio da população negra das áreas periféricas. Mas mesmo tendo um derrotado maior na estrutura social, todos os brasileiros estão apanhando nesta partida: a classe média que não pode andar mais com seu celular nas ruas das grandes cidades, as atividades econômicas que temem o roubo de cargas, a destruição das políticas de proteção ambiental na Amazônia pelo crime organizado, enfim, uma insegurança crescente que inviabiliza o futuro do país.

E quem é o vencedor neste jogo fragmentado, desorganizado e descoordenado territorialmente da segurança pública? O crime organizado está no topo dos vitoriosos, poder que cresce nacionalmente cada vez mais, com sua infiltração nas estruturas estatais e diversificação de atividades econômicas. Mas também ganham pontos de legitimidade os representantes do discurso do tiro, porrada e bomba que elegem cada vez mais parlamentares nos legislativos, apresentando como solução a morte e o aprisionamento da ralé do crime, o que por tabela mata milhares de inocentes pobres e pretos. A única coisa que não querem é que o sistema se estruture organizacionalmente e no plano federativo, porque suas carreiras políticas dependem da manutenção da Babel da política pública, porque assim podem apresentar soluções fáceis, simples e... erradas, como bem comprovam os indicadores nos últimos anos.

A questão ambiental teve importantes avanços desde a redemocratização. Legislações mais modernas e políticas públicas específicas melhoram a situação do Brasil em vários aspectos relativos à sustentabilidade. Claro que houve resistências de grupos cujo modelo de atuação econômica era arcaico, mas também houve negociações e ganhos incrementais. Ressalte-se ainda que há várias temáticas ambientais, e algumas delas avançaram mais e outras, bem menos. E, por fim, mesmo com vitórias importantes, não se conseguiu construir um sistema federativo que ampliasse a escala das ações e reduzisse a desigualdade na capacidade de os governos tratarem do tema em todo o território brasileiro.

Mas a urgência do tema ambiental ampliou-se vertiginosamente por conta da mudança climática. Trata-se de uma questão relevante na agenda mundial, com mais ênfase desde o Acordo de Paris, em 2015. Mais gente, grupos sociais e nações constataram que o relógio do desastre tinha se acelerado. A percepção da relevância da questão, entretanto, causou muito menos mudanças do que as necessárias, e os últimos anos vêm sendo marcados pela aceleração do aquecimento global e da ocorrência de eventos climáticos extremos.

O Brasil está no centro da questão climática porque é origem e grande receptáculo de suas nefastas consequências. Se suas políticas públicas para essa área fracassarem, o mundo inteiro sofrerá e o território brasileiro terá impactos negativos ainda maiores. Mesmo com os avanços ambientais citados anteriormente, não havia um modelo sistêmico para lidar com a mudança climática e a situação ficou ainda mais grave com o negacionismo e os crimes lesa-humanidade cometidos por Bolsonaro. Mas Trump vem aí para mostrar que o bolsonarismo era uma brisa perto dos furacões que poderão ser causados pelo isolacionismo americano.

A solução da moda, por vezes até messiânica, é criar uma Autoridade Climática. O posto pode ser um importante avanço, contudo será bastante limitado caso não seja criada uma governança colaborativa no plano do federalismo climático. De Brasília, mesmo com muitos recursos e uma boa burocracia, não se resolve a maior parte dos conflitos e dilemas amazônicos de preservação. A adaptação e a mitigação climática em todo o território nacional vão depender do fortalecimento das capacidades estatais de estados e municípios, além da necessidade de convencê-los a atuar cooperativamente entre si e junto com o governo federal.

O federalismo brasileiro e, por conseguinte, as principais políticas públicas caminham para o desastre se a Federação for lida como um conjunto de ilhas. A “ilha” da União muitas vezes quer resolver os problemas de forma meramente centralizada, e quando fica “boazinha” fala em relações interfederativas - um pleonasmo, porque federativo já significa pacto, acordo e articulação. E as “ilhas” dos estados e municípios muitas vezes fazem o jogo de empurra para o governo federal, querendo manter o poder decisório último, receber os recursos e repassar as responsabilidades. A famosa reunião do presidente Lula mostrou alguns governadores com vocação para comandar ilhas, mas não um país - e queimadas e crime organizado são problemas, no mínimo, nacionais.

O Brasil precisa urgentemente da institucionalização e fortalecimento do SUSP na segurança pública, bem como da criação de um sistema nacional com articulação intergovernamental na política de mudança climática. Sem integração federativa, o crime organizado vai crescer cada vez mais e os desastres climáticos vão se ampliar. Para alcançar essa nova governança colaborativa, é preciso instituir em ambas as políticas fóruns federativos nos quais a União, os estados e os municípios possam dialogar, negociar, decidir, atuar conjuntamente e planejar ações de longo prazo.

Os sistemas federativos de segurança e da política climática vão se ancorar na articulação e nas arenas intergovernamentais, que serão a garantia da autonomia de cada ente federativo, mas também o instrumento para construir uma nação melhor. Entender a relevância da Federação é compreender que somente pactos territoriais garantirão um futuro melhor ao Brasil.

 

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