Valor Econômico
Colheita do presidente terá que ficar para o último ano do governo se quiser salvá-lo
Na manhã desta quinta-feira, dona Norma (nome
fictício) chegou danada da vida à casa em que trabalha como empregada
doméstica. “Se Lula mexer no meu salário, não voto mais nele. Acordo às 4h da
manhã e [Fernando] Haddad e Simone [Tebet] querem cortar meu salário”. Sua
patroa tentou lhe explicar que a proposta em curso manterá o ganho real, mas
acabou convencida de que ela tem razão.
Naquela manhã, Dona Norma havia recebido
mensagem num grupo de WhatsApp com a “notícia”. Católica, mora em Formosa, a 78
km de Brasília, onde trabalha. Votou no presidente Luiz Inácio Lula da Silva em
2022, mas tem filha e genro policiais militares e eleitores de Jair Bolsonaro,
que agraciou um parente com o “Auxílio Brasil”, nome que o ex-presidente deu ao
Bolsa Família.
Dois dias antes, o senador Cleitinho
(Republicanos-MG) subiu à tribuna no Senado para criticar a escala 6x1 de
trabalho, movimento nascido no Psol. Disse que o pai, comerciante no sacolão de
Divinópolis (MG), morreu aos 70 anos fazendo uma escala 7x0 e, por isso, nunca
lhe levou a um jogo de futebol nem lhe ajudou nas lições da escola.
Cleitinho chegou ao Senado no bonde bolsonarista depois de derrotar o atual ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), em 2022, numa campanha feita com paródias, para as redes sociais, sobre corrupção e petistas.
Dona Norma e Cleitinho são duas lombadas na
rota da encruzilhada trazida pela volta de Donald Trump ao poder. Se, de um
lado, sua eleição deu urgência ao pacote fiscal, sem o qual a economia do
segundo biênio ameaça desandar, do outro, o ajuste arrisca o ibope de Lula, que
dificilmente poderá ser substituído como o candidato governista.
Em 2022, o bonde de Cleitinho não foi capaz
de carregar a turma de dona Norma, que tinha um encontro marcado com o legado
lulista. É a capacidade de Lula de honrá-lo que poderá manter seu eleitorado
imune aos bondes do populismo e da desinformação.
O terceiro ano costuma ser aquele em que os
governos começam a colher. O próprio Lula fez discursos e deu entrevistas ao
longo deste semestre anunciando a safra do segundo biênio. Agora está sendo
convencido de que a colheita deve ser adiada para o último ano de seu governo
sob pena de o juro, em contínua elevação, inviabilizar a retomada do
crescimento e os resultados que pretende.
Na sexta-feira, durante a cerimônia dos cinco
anos de sua saída da prisão, com religiosos de várias denominações que lá
estiveram, pareceu angustiado. A pessoas de seu círculo, não revelou motivos
distintos daqueles que tem exposto nos últimos dias: não aceitará que a corda
arrebente de um lado só, a da massa de eleitores de baixa renda do seu
eleitorado cativo.
É só olhar para a trajetória do déficit
fiscal ao longo deste ano para se atestar a dificuldade de Lula em equilibrar
os novos gastos distribuindo perdas e danos. Além disso, novas receitas como a
decorrente das mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)
ou a de concessões públicas não se confirmaram. Desonerações, como a da folha
de pagamentos, não se realizaram na velocidade com que se planejava, e, assim,
o governo se distanciou muito do anunciado déficit zero.
A ambição do pacote é proporcional à angústia
do presidente. Nenhum dos dois faz mover a resistência dos setores a serem
atingidos, especialmente aqueles mais organizados cujo poder de pressão move
uma indústria de esboços, minutas e simulações daquilo que está por vir.
O país já assistiu à ascensão da
extrema-direita uma vez - e quase uma segunda - para saber que a base social
deste governo só aceitará que a política de reajuste do mínimo se enquadre se,
na nau do arcabouço, também couberem aquinhoados de todos os naipes públicos e
privados, civis e militares. O pacote não é para o “mercado”, que, contra Lula,
embarcará novamente em qualquer bolsonarista escovado. É para que se cumpra o
programa que elegeu este governo.
Aquelas pressões que não surtirem efeito nos
corredores da Esplanada buscarão abrigo no Congresso ao longo da tramitação do
pacote. Muitas das frustrações de receita do governo se originaram de jabutis
parlamentares. O risco de que o mesmo aconteça com este pacote não pode ser
desprezado.
A tramitação do ajuste fiscal no Congresso
será concomitante à apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, de dois
movimentos determinantes para o eixo em torno do qual o Legislativo hoje se
estrutura, as emendas parlamentares. O primeiro são os relatórios da
Controladoria-Geral da União.
Além de esmiuçar, no detalhe, o disparate na
aplicação das emendas, destinadas, no melhor das hipóteses, a perpetuar
carreiras parlamentares sem que sejam atendidos os fins a que se destinam, o
ministro Vinicius Carvalho deixa claro no relatório que o STF terá panos pras
mangas para arguir pela inconstitucionalidade de dispositivos como as “emendas
Pix”. Com a usurpação das prerrogativas das câmaras municipais em deliberar
sobre a alocação dos recursos, estaria caracterizada a afronta ao princípio
federativo.
Além do relatório, CGU e Polícia Federal
fazem investigações conjuntas que podem vir a resultar em operações sobre
parlamentares. E, finalmente, há os inquéritos que já estão na Corte, que
atingem até candidatos às mesas diretoras que deitaram e rolaram com emendas.
Ou seja, se o Congresso terá em mãos um
pacote que pode vir a ser um divisor de águas deste mandato, o Supremo também
terá poderes para atingir em cheio o poder inédito de que hoje desfruta o
Legislativo, ainda que os rumos da extrema-direita nos EUA possam vir a
inibi-lo. O enfrentamento dos dois Poderes determinará o destino do terceiro, o
Executivo.
Exigirá uma mediação mais refinada do que
aquela que resultou na aprovação do acordo para as emendas: um teto para a
pilhagem. O presidente da República não terá como escapar de enfrentá-la se
quiser evitar que dona Norma suba no bonde de Cleitinho.
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