domingo, 3 de novembro de 2024

Lula faz uma reunião inútil - Elio Gaspari

O Globo

Presidente organizou encontro com governadores para encaminhar seu projeto de reforma da política nacional de segurança pública

Lula organizou na quinta-feira uma reunião com governadores para encaminhar seu projeto de reforma da política nacional de segurança pública. Para seu gosto, foi um êxito, pois adora reuniões, e todos os presidentes que gostam de eventos, sonham com pactos. Foi uma solene inutilidade.

A proposta do ministro Lewandowski tem um lado positivo em tese, e outro discutível na prática. Em tese, a unificação dos sistemas de informação é uma boa ideia. Vale lembrar que outra boa ideia, a do cartão nacional de saúde do SUS, com os dados pessoais e médicos das pessoas, veio do século passado e só agora ficou de pé. No caminho, aconteceu de tudo em outros governos, inclusive a compra de equipamentos que não saíram das caixas.

Os sistemas de informação não se comunicam porque os fornecedores querem ter exclusividade, e os operadores, por algum motivo, não querem compartilhar informações. Um juiz plantonista que liberta um traficante de drogas quer que sua decisão fique no escurinho do tribunal. Se Deus é brasileiro, o Sistema Único de Segurança funcionará nesta década. Afinal, o Lula 3.0 completará dois anos e o sistema da Polícia Rodoviária não está inteiramente integrado com o da Polícia Federal.

Já a transformação da Polícia Rodoviária numa POF, ou Polícia Ostensiva Federal, tem ingredientes tóxicos. No governo passado, a PRF era conhecida como Polícia Rodoviária do Flávio (Bolsonaro). Nos primeiros dias de governo, havia companheiros querendo recriar uma Guarda Nacional para Brasília.

O pacote da segurança aumentará num tiquinho o campo de atuação do governo federal. Os governadores que reclamam por isso evitam expor seus verdadeiros motivos.

Como a situação chegou a um grau alarmante, Brasília poderá trabalhar à vontade (ou não), valendo-se da Polícia Federal. O caso do assassinato da vereadora Marielle Franco é uma prova disso. O crime havia sido cometido sem um só bandido profissionalmente exclusivo. Na base, estavam dois ex-policiais. Na cúpula, irão a julgamento um deputado, um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado e um poderoso delegado. Isto posto, percebe-se porque a investigação patinou no Rio.

A segurança pública desandou porque um conjunto de interesses trava a repressão ao crime. Aí entram interesses políticos, conexões y otras cositas más. Federalizando-se alguns crimes e dando-se poder à Polícia Federal, joga-se contra as organizações criminosas o melhor aparelho de que o Estado dispõe. É o melhor aparelho levando-se em conta seus competidores, mas também não há ali um mar de rosas. Basta dizer que a PF batalha para que seu diretor tenha mandato de dois anos.

O ministro da Justiça que tiver que tratar desse pleito deveria dizer que também quer mandato.

Lewandowski é um cavalheiro

No evento de Lula com os governadores, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, disse o seguinte, tratando do assassinato da vereadora Marielle Franco:

“Por cinco anos, me desculpe, governador Cláudio Castro... o Rio de Janeiro demorou cinco anos para elucidar o caso e não esclareceu. A valorosa Polícia Federal entrou com sete homens e desvendou esse lamentável crime”.

Seria bom se tivesse sido assim. Policiais do Rio elucidaram o caso em poucas semanas. Outros policiais embaralharam a investigação, para proteger os criminosos de cima e de baixo.

A PF foi valorosa porque a turma do crime não teve cacife para atrapalhar seu trabalho.

Um retrato do crime organizado

A Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça, mapeou a extensão do crime organizado no país e sua penetração nas prisões. O retrato assusta.

Existem pelo menos 88 organizações criminosas, e elas têm delinquentes detidos em 1.760 pavilhões do sistema prisional. Duas delas, o Comando Vermelho, com predomínio no Rio, e o Primeiro Comando da Capital, predominante em São Paulo, têm alcance nacional. As demais são regionais ou locais. Em três estados, operam 46 organizações: Bahia (20), Minas Gerais (13) e Rio Grande do Sul (13).

Como essas quadrilhas se aliam ou combatem entre si, sete das dez cidades mais violentas do país estão na Bahia. Lá existe uma verdadeira guerra de bandidos, na qual vários grupos se enfrentam e combatem a expansão do Comando Vermelho e dos aliados do PCC.

Em Minas Gerais, pela sua posição geográfica, o PCC e o CV disputam áreas.

O trabalho da Senappen mostra que as rivalidades entre essas quadrilhas é um fator relevante na produção de altas taxas de criminalidade em algumas regiões do país.

Um retrato da Justiça

A Corregedoria Nacional de Justiça produziu um retrato do trabalho do Judiciário brasileiro. Assusta pela sobrecarga derivada do estímulo aos litígios. Todos os números são gordos. Os processos passaram dos 82 milhões, os magistrados são 18 mil e os servidores são 272 mil.

No guichê de entrega de resultados, uma sentença demora em média dois anos e sua execução, quatro.

A sobrecarga pode ser avaliada pelos números do funil do Superior Tribunal de Justiça. Ele é composto por 33 magistrados, e a Corte recebe 462 mil processos por ano.

Isso dá uma carga média de 40 processos por dia para cada ministro do STJ.

Aviso amigo

Suave nas disputas e bem-humorado na vida, o ministro José Múcio, da Defesa, é uma flor rara em Brasília. Ele deu ao Lula 3.0 seu melhor desempenho: tirou as Forças Armadas da agenda conflituosa em que haviam sido atiradas.

Já o Palácio do Planalto de Lula está na tradição ofídica que vem desde o Paço Imperial de D. Pedro I.

José Múcio não faz gestos bruscos, mas se o fogo amigo disparado contra ele não diminuir, um dia o verão foi-se embora.

Tiroteio petista

Escaldado pelo resultado eleitoral, o PT deu-se a um tiroteio interno com a busca de responsáveis pelas derrotas.

Com a vitória na eleição presidencial de 2022, ele resolveu ir em frente e, sem qualquer autocrítica, cavalgou o desmanche da Operação Lava-Jato mantendo intacta sua agenda. Descobriu que o eleitorado também não fez autocritica.

A origem de todos os padecimentos dos companheiros está numa percepção errada da vitória de 2022: não foi Lula que ganhou, foi Bolsonaro que perdeu.

Elmar perdeu o amigo

Depois de ser sido abandonado na chuva por Arthur Lira durante a disputa pela presidência da Câmara, o deputado Elmar Nascimento queixou-se: “Perdi meu melhor amigo.”

O doutor vai completar dez anos de Brasília e achava que tinha um amigo.

Alguém deveria ter lhe contado uma lição dada aos novatos que chegam a Washington: se você quer um amigo, arrume um cachorro.

Jogatina

A turma da sede arrecadatória achava que podia abrir a porteira da jogatina oferecendo custosas outorgas às empresas de apostas interessadas no mercado brasileiro. Produziram um desastre.

Fazendo-se de conta que a jogatina dita responsável não terá ligações com o crime organizado, nem produzirá uma epidemia de viciados, fica a questão da lavagem de dinheiro obtido ilicitamente.

As grandes casas de apostas operam com seus programas numa nuvem, localizada sabe-se lá onde. Quem souber como os algoritmos desse programa poderá ser auditado ganha duas apostas premiadas.

 

3 comentários:

  1. A coluna está interessante e diversificada, mas o colunista não me convenceu da "inutilidade" da reunião realizada por Lula com os governadores. O futuro é que nos mostrará se ela foi mesmo inútil ou se bons resultados virão a partir dela.

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  2. Merval Pereira e Eliane Cantanhêde aparentemente não concordam com este colunista sobre a questão do título desta coluna.

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