sábado, 23 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Inquérito sobre golpismo precisa vir a público

O Globo

Dada gravidade dos fatos, cidadãos devem conhecer acusações em detalhes para que responsáveis sejam punidos

O trabalho exemplar de investigação da Polícia Federal (PF) que desbaratou a intentona bolsonarista tem caráter histórico. Desde o fim da ditadura, não há registro de acusação maior de traição à vontade do povo. Felizmente, diante da ameaça, o contra-ataque das instituições foi certeiro, sinal de maturidade democrática do Brasil. Nos momentos críticos, os comandos do Exército e da Aeronáutica foram fiéis à Constituição. Depois de dois anos de investigação, a PF indiciou 12 civis e 25 militares acusados de tramar contra a democracia, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro, os ex-ministros Braga Netto (Defesa e Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Anderson Torres (Justiça) e o ex-comandante da Marinha Almir Garnier. É algo inédito em todo o período republicano. Dada a gravidade das evidências, era a única resposta digna.

Na terça-feira, a PF prendeu quatro militares do Exército e um policial federal acusados de planejar uma operação para matar, em dezembro de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes. O general Mário Fernandes, um dos presos, imprimiu o plano no Palácio do Planalto, depois encontrou Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Para a PF, são indícios de que o ex-presidente estava por dentro da conspiração golpista.

Na mesma época, Bolsonaro reuniu os comandantes das Forças Armadas. Em depoimento, os então chefes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Júnior, afirmaram que ele lhes apresentou versões de minutas golpistas e que se negaram a endossar a ruptura. De acordo com os relatos, Garnier, na época chefe da Marinha, apoiou o plano. Em novo depoimento nesta semana, o ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid reafirmou que Bolsonaro sugeriu alterações num dos documentos golpistas.

Segundo a PF, a casa de Braga Netto foi palco de encontro para discutir o assassinato de Lula, Alckmin e Moraes. Quatro meses antes, ele participara de reunião com Bolsonaro para debater estratégias de ataque ao processo eleitoral. Heleno afirmou em conversa gravada no Planalto que a virada de mesa deveria ocorrer antes das eleições. “Nós vamos ter que agir”, disse. Ainda segundo a PF, Braga Netto e Heleno formariam um “gabinete de crise” para tomar o poder depois dos assassinatos. O general Nogueira, dizem as investigações, participou de discussões sobre a minuta golpista e atuou para desacreditar as urnas eletrônicas. Torres tinha em casa outra minuta golpista.

Caberá à Procuradoria-Geral da República decidir se pedirá novas investigações e se oferecerá denúncias. Algumas dúvidas na trama ainda precisam ser dirimidas. A principal é o grau de envolvimento de Bolsonaro. Ele sabia do plano dos assassinatos? Negou-se a ir adiante com o golpe porque o comando do Exército resistiu ou porque não quis “sair das quatro linhas”, como insistem os bolsonaristas? O que exatamente foi decidido na reunião na casa de Braga Netto? Por que a operação dos assassinatos foi abortada? Diante de fatos tão graves, não faz sentido que a íntegra do inquérito continue em sigilo. Ela precisa vir a público quanto antes. Não pode pairar nenhuma dúvida sobre as acusações, para que os golpistas sejam julgados e punidos à altura.

STJ avançou ao autorizar importação de sementes e cultivo de cânhamo

O Globo

Variedade da ‘Cannabis’ poderá ser usada em medicamentos, mas ainda é preciso liberar uso industrial

Foi um avanço a decisão unânime da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de autorizar, para fins medicinais, a importação de sementes e o cultivo de cânhamo, variedade da Cannabis que não gera efeitos psicotrópicos. Caberá à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar a prática num prazo de até seis meses. Não há dúvida de que a Corte rompeu uma barreira histórica. Embora se trate de questão relevante para a sociedade, o tema costuma ser contaminado por visões de cunho ideológico, moral e religioso que impedem um debate maduro e isento.

Os ministros julgaram recurso de uma empresa de biotecnologia contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que rejeitara pedido para importação de sementes, plantio, comercialização e exploração do cânhamo industrial. A empresa sustentou que se tratava de variedade da Cannabis com baixos níveis de THC, principal composto psicoativo da planta, inadequada, portanto, para uso recreativo, mas útil para fins medicinais e industriais. Ao rejeitar o pedido, o TRF entendeu que a autorização era questão de política pública e não demandava intervenção da Justiça.

Relatora do caso no STJ, a ministra Regina Helena Costa destacou os prejuízos que a falta de regulamentação traz à saúde dos brasileiros. “As ações de cultivo e comercialização em território nacional seguem desamparadas de norma regulamentar, impondo, desse modo, indevida restrição ao exercício do direito fundamental à saúde, constitucionalmente assegurado e dever do Estado”, disse. Segundo a ministra, “as pesquisas farmacológicas de fitocanabinoides enfrentam alto custo de produção”, em parte devido à necessidade de importar insumos, “não raro atingindo preços proibitivos”.

O procurador Aurélio Veiga Rios também defendeu a autorização, ressaltando que a discussão no tribunal não tratava da descriminalização das drogas. Ele enfatizou a distinção entre cânhamo e maconha: “O cânhamo é cultivado para utilização de manufatura de diversos produtos, inclusive farmacêuticos, e a variedade da Cannabis sativa conhecida como maconha, por sua vez, é a planta cultivada de uso como droga psicoativa”.

Por mais que a decisão do STJ avance em tema sensível, ainda é preciso avançar mais. A autorização diz respeito apenas ao uso farmacêutico do cânhamo, deixando de contemplar a produção de fibras ou tecidos. Além disso, a questão vai além do cânhamo. Não se pode ignorar que milhares de pacientes no Brasil fazem uso de outras variedades da Cannabis em medicamentos à base de canabidiol (CBD) ou tetrahidrocanabidiol (THC), para tratar problemas como dor crônica, epilepsia refratária ou transtornos neuropsiquiáticos. Como a planta não pode ser cultivada no país, os produtos têm de ser importados — e custam caro. Cedo ou tarde, os legisladores terão de se debruçar sobre o tema. Um dos méritos da decisão do STJ é trazer a questão novamente à discussão.

Bolsonaro agora é suspeito formal por trama golpista

Folha de S. Paulo

Processo precisa avançar com a celeridade possível, mas sem nunca atropelar as garantias de um Estado de Direito

Nunca foi fácil equilibrar o tempo da Justiça com o da sociedade; a necessidade de observar o devido processo legal costuma contrariar expectativas legítimas de presteza no desfecho de julgamentos.

E poucas vezes foi tão importante nivelar os dois pratos da balança quanto nos casos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que envolvem suspeitas sobre crimes de gravidade extrema e medidas judiciais de caráter heterodoxo.

Os mais de dois anos desde as últimas eleições gerais podem parecer muito ou pouco, a depender da perspectiva, mas constituem o tempo que a Polícia Federal consumiu antes de encerrar suas investigações sobre uma tentativa de golpe de Estado em 2022.

órgão concluiu que Bolsonaro e mais 36 pessoas participaram de trama para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —o que não representa propriamente surpresa, dada a pletora de ataques que o ex-presidente desferiu, em plena luz do dia, contra instituições democráticas.

A novidade fica por conta do indiciamento de outras autoridades, como Braga Netto (ex-ministro da Defesa e vice na chapa bolsonarista em 2022), Augusto Heleno (ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional), Almir Garnier Santos (ex-comandante da Aeronáutica) e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (ex-comandante do Exército).

Em um país com longo histórico de quarteladas, não se pode subestimar o fato de haver militares de alta patente em um relatório policial que trata dos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.

O indiciamento, contudo, não implica condenação; significa apenas que a PF considerou haver elementos suficientes para transformar Bolsonaro —como os demais 36— em suspeito formal. Diversas etapas processuais precisarão ser observadas antes que um julgamento comece.

Parecerá, aos olhos de muitos, uma demora exagerada. Acumulam-se evidências conhecidas, como a minuta do golpe encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, sem falar nos depoimentos que mencionam reuniões conspiratórias.

Trata-se, todavia, de rito necessário. Deve-se dimensionar a participação de cada um em articulações golpistas e avaliar se as atitudes configuraram mais do que simples maquinações abstratas.

O caso obviamente envolverá comoção após eventos dramáticos como o 8 de janeiro, a recente explosão de um homem em frente ao Supremo Tribunal Federal e a investigação de um plano para assassinar Lula, seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Pouco importa. O Judiciário precisa ser rigoroso, sem dúvida, mas sempre na medida das responsabilidades; não pode ser lento nem precipitado, não pode ser leniente nem draconiano, sob pena de se tornar injusto e desproporcional. Ao Estado de Direito cumpre ser melhor do que aqueles que tentaram derrubá-lo.

Explosão da letalidade põe PM paulista em xeque

Folha de S. Paulo

Mortes de criança e de estudante de medicina evidenciam condutas temerárias na escalada da violência estatal sob o governo Tarcísio

Ryan Santos, 4, brincava na rua, em um morro de Santos (SP), quando uma bala de fuzil atingiu seu abdome durante operação policial —seu pai já havia sido morto em uma outra ação da PM, meses antes. Na Vila Mariana, na capital, Marco Aurélio Acosta, 22, derrubou um soldado durante uma abordagem e, após o parceiro do agente reagir, também foi alvejado na barriga.

As mortes da criança, em um bairro popular, e do estudante de medicina desarmado, em área nobre, causaram comoção e devem engrossar as já alarmantes estatísticas da letalidade policial em São Paulo —no caso de Ryan, segundo oficiais, o disparo "provavelmente" partiu de um PM.

Em quase metade do mandato, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) registra, mês a mês, escalada vertiginosa de óbitos.

Segundo dados da própria Secretaria da Segurança Pública, o número de pessoas mortas no estado por policiais militares em serviço subiu 82% entre janeiro e setembro deste ano: 474 ante 261 em 2023. Em 2022, ainda sob a gestão João Doria (PSDB, hoje sem partido), foram 180.

violência estatal não é um fenômeno exclusivo paulista. Ainda que o país tenha registrado redução de 0,9% no ano passado, as mortes por intervenção policial quase triplicaram em uma década (de 2.212, em 2013, para 6.393, em 2023), segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Nota-se, também, que a alta letalidade independe de colorações partidárias. A Bahia, governada pelo PT, e o Rio, pelo PL, detêm o maior número absoluto de mortes do ano passado, com 1.699 e 871, respectivamente.

A média de 17,5 óbitos por dia torna a polícia brasileira uma das mais violentas do mundo. Para comparação, e guardadas abissais diferenças sociais e de motivação nas abordagens, a letalidade da polícia nos EUA —não exatamente um exemplo de procedimento— é pouco mais de 10% da observada aqui, em proporção da população.

No caso paulista, o afrouxamento de mecanismos de controle, como o subaproveitamento das câmeras corporais, e discursos condescendentes do governador e de seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, com potencial efeito liberalizante no comportamento da tropa, podem ter contribuído para o morticínio.

A retórica populista e a prática truculenta decerto têm aderência em camadas da população, mas são inócuas no combate efetivo à criminalidade, que carece sobretudo de uma polícia responsável e bem preparada, cujo propósito maior é proteger os cidadãos.

Um remendo nas contas públicas

O Estado de S. Paulo

Dinâmica das despesas obriga equipe econômica a novo bloqueio para manter o arcabouço de pé. Sua sustentabilidade, contudo, depende da revisão de políticas que o próprio governo criou

O esperado novo bloqueio de despesas públicas, de R$ 5 bilhões, para evitar o descumprimento do limite de despesas, é apenas mais um remendo no esfarrapado arcabouço fiscal. A pouco mais de um mês de concluir a metade do mandato, o governo Lula da Silva ainda tem de recorrer a medidas paliativas para cumprir o limite inferior da meta, que prevê um rombo de até R$ 28 bilhões neste ano.

Para fechar 2024 no centro da meta fiscal, com déficit zero, como prevê o arcabouço, o governo necessitaria de um incremento adicional de R$ 42,3 bilhões na arrecadação do último bimestre, segundo cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão de monitoramento vinculado ao Senado.

Para a IFI, este não parece ser um cenário factível, pois demandaria surpresas ou uma ajuda extra – e isso apesar dos 11 recordes mensais sucessivos na arrecadação, que levaram a receita pública federal a acumular R$ 2,18 trilhões até outubro.

O motivo é simples como os conceitos da aritmética básica: as receitas têm sido em muito superadas pelas despesas. E o mais recente Relatório de Acompanhamento Fiscal da IFI deixa muito claro o porquê. Medidas pactuadas antes mesmo da posse de Lula da Silva e ações adotadas no primeiro ano de sua gestão tornaram ainda mais complexo o frágil equilíbrio das contas públicas.

O relatório confirma o que este jornal tem apontado com insistência sobre as consequências de medidas mal planejadas e movidas por aspirações eleitoreiras e populistas, como as que marcam a economia sob o bastão de Lula da Silva. As quatro políticas públicas mais custosas ao erário tiveram precisamente esse perfil.

São elas a manutenção do benefício de R$ 600 para o Bolsa Família, uma deferência feita no período mais crítico da covid-19 e que deveria ter sido revista após a pandemia; o reajuste do salário mínimo, atrelado também ao crescimento econômico, além do cálculo pela inflação; a indexação dos pisos para Saúde e Educação às receitas, e não mais limitadas à inflação, como estabelecia o teto de gastos; e a criação de mais dois fundos públicos para promover o desenvolvimento regional e compensar benefícios fiscais como contrapartida à aprovação da reforma tributária.

Juntas, essas quatro políticas públicas vão gerar um custo entre R$ 2,3 trilhões e R$ 3 trilhões em uma década. São medidas com peso permanente, não apenas pontual. Assim sendo, para garantir um rearranjo estrutural nas contas públicas, o tão esperado pacote de despesas deveria revê-las, assim como apresentar medidas para conter o avanço exponencial dos gastos com previdência e assistência social.

Mas, ao que tudo indica, Lula da Silva parece propenso, quando muito, a alterar as regras na política de valorização do salário mínimo. Talvez tenha sido convencido de que elevar de forma tão intensa o piso pode escancarar a insustentabilidade do arcabouço fiscal antes mesmo do fim de seu mandato – algo que, aliás, já começa a acontecer.

Bloqueios, como se sabe, não são cortes, mas apenas uma espécie de congelamento para limitar o aumento do gasto a 2,5% ao ano, já descontada a inflação. E é muito preocupante que tenha de se recorrer a eles em um momento de arrecadação vigorosa, pois isso revela o tamanho da dificuldade do governo para manter as contas minimamente equilibradas.

No acumulado até outubro, o País registrou o melhor resultado de toda a série histórica, iniciada em 1995. As receitas tiveram alta de 9,69% em relação a igual período de 2023, já descontada a inflação. Junte-se a isso a contribuição bilionária da Petrobras, que acaba de anunciar a distribuição de dividendos extraordinários de R$ 20 bilhões, o que renderá ao Tesouro um repasse total de R$ 23,46 bilhões no ano.

Contar somente com receitas para cumprir a meta fiscal não é, nem nunca foi, uma decisão prudente, sobretudo quando não se mexe na dinâmica das despesas. O fato de que nem mesmo os recordes históricos de arrecadação facilitaram o trabalho da equipe econômica na busca da meta fiscal deixa muito claro onde o problema de fato está. E o relatório da IFI aponta quem é o maior responsável por isso.

Antecipação de julgamento

O Estado de S. Paulo

Ministros têm falado demais sobre casos que ainda vão julgar. Já passou da hora de a mais alta instância do Judiciário contribuir para serenar ânimos e cuidar melhor de sua legitimidade

Há poucos dias, como se sabe, um sujeito radicalizado pelo discurso bolsonarista contra as instituições democráticas arremessou um explosivo em direção ao Supremo Tribunal Federal (STF) pouco antes de detonar outro artefato que trazia junto ao próprio corpo, morrendo no local. Logo após esse trágico episódio, veio a público a informação de que a Polícia Federal (PF) teria descortinado uma conspiração entre militares de alta patente e autoridades civis para, supostamente, assassinar o presidente Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, a fim de manter Jair Bolsonaro no poder após sua derrota eleitoral em 2022.

Não seria razoável esperar que o Supremo Tribunal Federal permanecesse em silêncio diante desses e de outros gravíssimos atentados e ameaças que tanto a instituição como os seus ministros têm sofrido – e não de agora. Mais do que os vitupérios que são dirigidos à Corte nas redes sociais, mas não só, desde que Bolsonaro a alçou à condição de “inimiga do povo”, as ameaças à integridade da sede da mais alta instância do Judiciário brasileiro e, principalmente, à vida de seus ministros e familiares ganharam uma proporção inaudita na história recente do País. É dever de qualquer democrata que se preze repudiar essa violência extrema nos mais veementes termos.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, deveria manifestar sua condenação às agressões de que tem sido vítima constante de forma mais serena e republicana. A Corte deveria responder como a instituição fundamental que é para o País. Alguns ministros, entretanto, escolheram a via da espetacularização, do individualismo e, é forçoso dizer, da ilação, o que nem remotamente se coaduna com o comportamento que se espera de magistrados. Até agora, o que tem sido visto é uma clara demonstração de sucumbência de alguns ministros ao calor dos holofotes.

O correto para uma Corte Suprema ciosa de seu papel institucional, para um tribunal que deseja ser visto e reconhecido pela sociedade por sua imparcialidade e sobriedade até nas horas mais dramáticas, seria se manifestar apenas por meio de uma nota oficial, quando avaliar ser o caso. Se assim o fizesse, o Supremo Tribunal Federal poderia, a um só tempo, condenar cada um desses ataques infames, exortar as autoridades incumbidas das investigações a realizar seu trabalho com profissionalismo e espírito público e, por fim, reforçar a defesa da democracia como o único regime capaz de trazer paz e progresso para todos os cidadãos. Tudo mais haverá de ser dito pelos ministros se e quando esses casos chegarem à fase de julgamento pelo colegiado.

Mas há ministros que parecem incapazes de esperar e se permitem emitir opiniões sobre os casos como se já estivessem votando para condenar ou absolver os indiciados que nem réus ainda são. No episódio mais recente, o decano da Corte, ministro Gilmar Mendes, concedeu longa entrevista à GloboNews na qual não só esteve à vontade para comentar as investigações em andamento contra Bolsonaro e outros implicados pela Polícia Federal, como ainda rebateu os argumentos dos bolsonaristas que provavelmente serão os mesmos argumentos dos advogados dos acusados se o caso chegar ao Supremo Tribunal Federal. Mas o sr. Mendes não é o único, infelizmente. Recorde-se que os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes não esperaram sequer o cheiro de pólvora se dissipar na Praça dos Três Poderes para estabelecerem o liame entre as explosões detonadas pelo bolsonarista Francisco Wanderley Luiz e os atos golpistas do 8 de Janeiro de 2023.

Cada ministro que lide com sua consciência, mas uma coisa é certa: o Supremo perde muito como instituição com essa incontinência verbal de alguns de seus membros, em especial no que concerne à legitimidade de suas decisões. E com isso, claro, perde o País.

A banalidade da morte em SP

O Estado de S. Paulo

Por nada, um jovem foi assassinado à queima-roupa por um PM claramente mal treinado

Mata-se com muita facilidade em São Paulo. Noticia-se com frequência macabra o assassinato de cidadãos durante assaltos, muitas vezes sem que as vítimas tenham esboçado qualquer reação. Mas de bandidos, afinal, não se deve esperar contenção nem respeito a padrões civilizatórios. Já de policiais, em tese treinados para o uso controlado e proporcional da violência, espera-se que só efetuem disparos letais em último caso. Afinal, o trabalho policial não é matar, e sim impedir crimes e prender suspeitos. Porém, como se viu no trágico caso do assassinato de um estudante de Medicina após uma abordagem policial na zonal sul da capital paulista dias atrás, há policiais evidentemente despreparados para vestir a farda. Se houver mais policiais militares (PMs) como o soldado Guilherme Macedo nas ruas, que Deus nos proteja.

O caso ainda está em investigação. Mas, do que se sabe até aqui, o estudante Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, provocou a fúria dos policiais que o abordaram ao dar um tapa no espelho retrovisor da viatura em que estavam, como mostram as imagens de uma câmera na rua. Aliás, até a tarde de ontem, dois dias depois do crime, não haviam aparecido imagens das câmeras dos uniformes dos policiais – se é que existem. Tudo o que se viu desse episódio que terminou em morte foi documentado por câmeras particulares de segurança, em fragmentos de imagens que não permitem conhecer o desenrolar dos fatos em sua íntegra.

Nas cenas disponíveis, o jovem, desarmado, sem camisa e aparentemente atordoado, corre dos policiais, reage à abordagem e, quando já estava no chão, sem qualquer chance de matar os PMs, é alvejado por um deles no abdômen. Simples assim.

Em entrevista ao Estadão, antes mesmo de enterrar o filho, a médica Mônica Cardenas Prado, de 57 anos, lançou a pergunta óbvia: “A Polícia Militar de São Paulo está matando por um retrovisor?”.

É o que parece. Tudo o que se viu naquela sequência terrível de imagens revela o descumprimento de protocolos e regras de abordagem pelo soldado da PM paulista, supostamente uma das mais bem treinadas e equipadas do País.

Por óbvio, matar alguém deveria ser o último recurso ao qual um agente do Estado deveria recorrer. Mas o PM, agora afastado de suas funções e indiciado por homicídio doloso, ignorou o uso progressivo da força. Não recorreu a armas não letais, como taser e cassetete, nem aplicou um golpe capaz de imobilizar o estudante.

O governador Tarcísio de Freitas, que costuma justificar a violência da polícia que comanda, demorou 40 horas para condenar a ação dos policiais, dizendo que “essa não é a conduta que a polícia do Estado de São Paulo deve ter com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância”. De acordo com Tarcísio, “abusos nunca vão ser tolerados e serão severamente punidos”.

É o mínimo, mas o governador precisa assegurar que seja um caso isolado. Sabe-se que Tarcísio e seu secretário de Segurança, Guilherme Derrite, são entusiastas de uma polícia que desperta medo. Mas, quando são os cidadãos inocentes que devem temer a polícia, é sinal de que a coisa não vai bem.

Democracia e garantias do processo legal

Correio Braziliense

Apesar da gravidade do indiciamento de Bolsonaro e mais 36 por tentativa de golpe, não cabem penas antecipadas. É preciso assegurar o devido processo legal

São estarrecedores, inaceitáveis e execráveis os fatos apontados pela Polícia Federal no indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas — entre as quais os cinco generais de quatro estrelas — por tentativa de golpe de Estado e associação criminosa, em 8 de janeiro de 2023. Sem falar o fato de que há quatro militares e um policial federal presos por supostamente planejarem o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes logo após as eleições de 2022.

O caso segue em investigação. Certamente, haverá novos desdobramentos — sobretudo a partir do depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, ao ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito, nesta quinta-feira, que incrimina o ex-ministro da Casa Civil e da Defesa Braga Netto e compromete Bolsonaro. Há que se analisar todas as provas, seguindo os ritos legais, para punir exemplarmente os envolvidos.

O ex-presidente é suspeito de ter participado de conspirações para se manter no poder, incentivar a desconfiança nas urnas eletrônicas e incitar os ataques às sedes dos Três Poderes, cujos palácios foram invadidos por radicais e depredados em 8 de janeiro de 2023. Indiciado em outros processos, Bolsonaro teve negado pelo STF um habeas corpus preventivo e é apontado como um dos responsáveis pelos prejuízos calculados em R$ 26 milhões provocados pelos atos de vandalismo.

O STF, até agora, condenou 268 pessoas pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, com penas que variam de três a 17 anos.Também foram feitos 476 acordos de não persecução penal — casos em que não houve violência e o réu admitiu a culpa, com pena inferior a quatro anos, mediante pagamento de multas e prestação de serviços comunitários. 

O desenrolar desse processo será um marco para a consolidação da democracia no Brasil, ainda mais porque militares de alta patente, que supostamente planejaram a tentativa de golpe, serão julgados pela Justiça civil pela primeira vez. Sabe-se que é uma situação atípica, por qualquer ângulo que se olhe. Inclusive a existência de um inquérito aberto por ofício pelo então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para investigar fake news e ameaças aos integrantes da Corte, agora comprovadas. 

Em qualquer processo penal, os réus têm direitos assegurados pela Constituição Federal e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.Esses direitos garantem um julgamento justo e a proteção contra abusos. Há, portanto, que se respeitar o contraditório e a ampla defesa. Os réus têm direito de conhecer as acusações e se defender com todos os recursos cabíveis. 

O Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que reforça o direito a ser ouvido por um tribunal competente, independente e imparcial. Apesar da gravidade do caso, não cabem penas antecipadas. É preciso assegurar o devido processo legal para que realmente a democracia prevaleça em relação ao arbítrio, e não o contrário.

 


 

 

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