Inquérito sobre golpismo precisa vir a público
O Globo
Dada gravidade dos fatos, cidadãos devem
conhecer acusações em detalhes para que responsáveis sejam punidos
O trabalho exemplar de investigação da Polícia
Federal (PF) que desbaratou a intentona bolsonarista tem
caráter histórico. Desde o fim da ditadura, não há registro de acusação maior
de traição à vontade do povo. Felizmente, diante da ameaça, o contra-ataque das
instituições foi certeiro, sinal de maturidade democrática do Brasil. Nos
momentos críticos, os comandos do Exército e da Aeronáutica foram fiéis à
Constituição. Depois de dois anos de investigação, a PF indiciou 12 civis e 25
militares acusados de tramar contra a democracia, entre eles o ex-presidente Jair
Bolsonaro, os ex-ministros Braga Netto (Defesa e Casa Civil),
Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira
(Defesa), Anderson Torres (Justiça) e o ex-comandante da Marinha Almir Garnier.
É algo inédito em todo o período republicano. Dada a gravidade das evidências,
era a única resposta digna.
Na terça-feira, a PF prendeu quatro militares do Exército e um policial federal acusados de planejar uma operação para matar, em dezembro de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes. O general Mário Fernandes, um dos presos, imprimiu o plano no Palácio do Planalto, depois encontrou Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Para a PF, são indícios de que o ex-presidente estava por dentro da conspiração golpista.
Na mesma época, Bolsonaro reuniu os
comandantes das Forças Armadas. Em depoimento, os então chefes do Exército,
general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos
Baptista Júnior, afirmaram que ele lhes apresentou versões de minutas golpistas
e que se negaram a endossar a ruptura. De acordo com os relatos, Garnier, na
época chefe da Marinha, apoiou o plano. Em novo depoimento nesta semana, o
ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid reafirmou que Bolsonaro sugeriu
alterações num dos documentos golpistas.
Segundo a PF, a casa de Braga Netto foi palco
de encontro para discutir o assassinato de Lula, Alckmin e Moraes. Quatro meses
antes, ele participara de reunião com Bolsonaro para debater estratégias de
ataque ao processo eleitoral. Heleno afirmou em conversa gravada no Planalto
que a virada de mesa deveria ocorrer antes das eleições. “Nós vamos ter que
agir”, disse. Ainda segundo a PF, Braga Netto e Heleno formariam um “gabinete
de crise” para tomar o poder depois dos assassinatos. O general Nogueira, dizem
as investigações, participou de discussões sobre a minuta golpista e atuou para
desacreditar as urnas eletrônicas. Torres tinha em casa outra minuta golpista.
Caberá à Procuradoria-Geral da República
decidir se pedirá novas investigações e se oferecerá denúncias. Algumas dúvidas
na trama ainda precisam ser dirimidas. A principal é o grau de envolvimento de
Bolsonaro. Ele sabia do plano dos assassinatos? Negou-se a ir adiante com o
golpe porque o comando do Exército resistiu ou porque não quis “sair das quatro
linhas”, como insistem os bolsonaristas? O que exatamente foi decidido na
reunião na casa de Braga Netto? Por que a operação dos assassinatos foi abortada?
Diante de fatos tão graves, não faz sentido que a íntegra do inquérito continue
em sigilo. Ela precisa vir a público quanto antes. Não pode pairar nenhuma
dúvida sobre as acusações, para que os golpistas sejam julgados e punidos à
altura.
STJ avançou ao autorizar importação de
sementes e cultivo de cânhamo
O Globo
Variedade da ‘Cannabis’ poderá ser usada em
medicamentos, mas ainda é preciso liberar uso industrial
Foi um avanço a decisão unânime da Primeira
Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
de autorizar, para fins medicinais, a importação de sementes e o cultivo de
cânhamo, variedade da Cannabis que não gera efeitos psicotrópicos.
Caberá à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar a
prática num prazo de até seis meses. Não há dúvida de que a Corte rompeu uma
barreira histórica. Embora se trate de questão relevante para a sociedade, o
tema costuma ser contaminado por visões de cunho ideológico, moral e religioso
que impedem um debate maduro e isento.
Os ministros julgaram recurso de uma empresa
de biotecnologia contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região
(TRF-4) que rejeitara pedido para importação de sementes, plantio,
comercialização e exploração do cânhamo industrial. A empresa sustentou que se
tratava de variedade da Cannabis com baixos níveis de THC, principal
composto psicoativo da planta, inadequada, portanto, para uso recreativo, mas
útil para fins medicinais e industriais. Ao rejeitar o pedido, o TRF entendeu
que a autorização era questão de política pública e não demandava intervenção
da Justiça.
Relatora do caso no STJ, a ministra Regina
Helena Costa destacou os prejuízos que a falta de regulamentação traz à saúde
dos brasileiros. “As ações de cultivo e comercialização em território nacional
seguem desamparadas de norma regulamentar, impondo, desse modo, indevida
restrição ao exercício do direito fundamental à saúde, constitucionalmente
assegurado e dever do Estado”, disse. Segundo a ministra, “as pesquisas
farmacológicas de fitocanabinoides enfrentam alto custo de produção”, em parte
devido à necessidade de importar insumos, “não raro atingindo preços
proibitivos”.
O procurador Aurélio Veiga Rios também
defendeu a autorização, ressaltando que a discussão no tribunal não tratava da
descriminalização das drogas. Ele enfatizou a distinção entre cânhamo e maconha:
“O cânhamo é cultivado para utilização de manufatura de diversos produtos,
inclusive farmacêuticos, e a variedade da Cannabis sativa conhecida
como maconha, por sua vez, é a planta cultivada de uso como droga psicoativa”.
Por mais que a decisão do STJ avance em tema
sensível, ainda é preciso avançar mais. A autorização diz respeito apenas ao
uso farmacêutico do cânhamo, deixando de contemplar a produção de fibras ou
tecidos. Além disso, a questão vai além do cânhamo. Não se pode ignorar que
milhares de pacientes no Brasil fazem uso de outras variedades da Cannabis em
medicamentos à base de canabidiol (CBD) ou tetrahidrocanabidiol (THC), para
tratar problemas como dor crônica, epilepsia refratária ou transtornos
neuropsiquiáticos. Como a planta não pode ser cultivada no país, os produtos
têm de ser importados — e custam caro. Cedo ou tarde, os legisladores terão de
se debruçar sobre o tema. Um dos méritos da decisão do STJ é trazer a questão
novamente à discussão.
Bolsonaro agora é suspeito formal por trama
golpista
Folha de S. Paulo
Processo precisa avançar com a celeridade
possível, mas sem nunca atropelar as garantias de um Estado de Direito
Nunca foi fácil equilibrar o tempo da Justiça
com o da sociedade; a necessidade de observar o devido processo legal costuma
contrariar expectativas legítimas de presteza no desfecho de julgamentos.
E poucas vezes foi tão importante nivelar os dois pratos da balança quanto nos
casos do ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL), que envolvem suspeitas sobre crimes de
gravidade extrema e medidas judiciais de caráter heterodoxo.
Os mais de dois anos desde as últimas
eleições gerais podem parecer muito ou pouco, a depender da perspectiva, mas
constituem o tempo que a Polícia
Federal consumiu antes de encerrar suas
investigações sobre uma tentativa de golpe de Estado em 2022.
O órgão
concluiu que Bolsonaro e mais 36 pessoas participaram de trama
para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
—o que não representa propriamente surpresa, dada a pletora de ataques que o
ex-presidente desferiu, em plena luz do dia, contra instituições democráticas.
A novidade fica por conta do indiciamento
de outras autoridades, como Braga Netto (ex-ministro da Defesa e
vice na chapa bolsonarista em 2022), Augusto Heleno (ex-ministro-chefe do
Gabinete de Segurança Institucional), Almir Garnier Santos (ex-comandante da
Aeronáutica) e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (ex-comandante do Exército).
Em um país com longo histórico de
quarteladas, não se pode subestimar o fato de haver militares de alta patente
em um relatório policial que trata dos crimes de abolição violenta do Estado
democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
O indiciamento, contudo, não implica
condenação; significa apenas que a PF considerou haver elementos suficientes
para transformar Bolsonaro —como os demais 36— em suspeito formal. Diversas
etapas processuais precisarão ser observadas antes que um julgamento comece.
Parecerá, aos olhos de muitos, uma demora
exagerada. Acumulam-se evidências conhecidas, como a minuta do
golpe encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da
Justiça, sem falar nos depoimentos que mencionam reuniões conspiratórias.
Trata-se, todavia, de rito necessário.
Deve-se dimensionar a participação de cada um em articulações golpistas e
avaliar se as atitudes configuraram mais do que simples maquinações abstratas.
O caso obviamente envolverá comoção após
eventos dramáticos como o 8 de
janeiro, a recente explosão de um homem em frente ao Supremo
Tribunal Federal e a investigação de um plano para
assassinar Lula, seu vice, Geraldo
Alckmin (PSB), e o ministro Alexandre de
Moraes, do STF.
Pouco importa. O Judiciário precisa ser
rigoroso, sem dúvida, mas sempre na medida das responsabilidades; não pode ser
lento nem precipitado, não pode ser leniente nem draconiano, sob pena de se
tornar injusto e desproporcional. Ao Estado de Direito cumpre ser melhor do que
aqueles que tentaram derrubá-lo.
Explosão da letalidade põe PM paulista em
xeque
Folha de S. Paulo
Mortes de criança e de estudante de medicina
evidenciam condutas temerárias na escalada da violência estatal sob o governo
Tarcísio
Ryan Santos,
4, brincava na rua, em um morro de Santos (SP), quando uma bala de
fuzil atingiu seu abdome durante operação policial —seu pai já havia sido morto
em uma outra ação da PM, meses antes. Na Vila Mariana, na capital, Marco Aurélio
Acosta, 22, derrubou um soldado durante uma abordagem e, após o
parceiro do agente reagir, também foi alvejado na barriga.
As mortes da criança, em um bairro popular, e do estudante de medicina
desarmado, em área nobre, causaram comoção e devem engrossar as já alarmantes
estatísticas da letalidade policial em São Paulo —no
caso de Ryan, segundo oficiais, o disparo "provavelmente" partiu de
um PM.
Em quase metade do mandato, o governo Tarcísio de
Freitas (Republicanos) registra, mês a mês, escalada
vertiginosa de óbitos.
Segundo dados da própria Secretaria da Segurança Pública, o número de pessoas
mortas no estado por policiais militares em serviço subiu 82% entre
janeiro e setembro deste ano: 474 ante 261 em 2023. Em 2022, ainda sob a gestão
João Doria (PSDB, hoje sem partido), foram 180.
A violência estatal não é um
fenômeno exclusivo paulista. Ainda que o país tenha registrado
redução de 0,9% no ano passado, as mortes por intervenção policial quase
triplicaram em uma década (de 2.212, em 2013, para 6.393, em 2023), segundo
o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública.
Nota-se, também, que a alta letalidade independe de colorações partidárias.
A Bahia,
governada pelo PT, e o Rio, pelo PL, detêm o maior número absoluto de mortes do
ano passado, com 1.699 e 871, respectivamente.
A média de 17,5 óbitos por dia torna a polícia brasileira
uma das mais violentas do mundo. Para comparação, e guardadas abissais
diferenças sociais e de motivação nas abordagens, a letalidade da polícia nos
EUA —não exatamente um exemplo de procedimento— é pouco mais de 10% da
observada aqui, em proporção da população.
No caso paulista, o afrouxamento de mecanismos de controle, como o subaproveitamento
das câmeras corporais, e discursos
condescendentes do governador e de seu secretário da Segurança
Pública, Guilherme
Derrite, com potencial efeito liberalizante no comportamento da
tropa, podem ter contribuído para o morticínio.
A retórica populista e a prática truculenta decerto têm aderência em camadas da
população, mas são inócuas no combate efetivo à criminalidade, que carece
sobretudo de uma polícia responsável e bem preparada, cujo propósito maior é
proteger os cidadãos.
Um remendo nas contas públicas
O Estado de S. Paulo
Dinâmica das despesas obriga equipe econômica
a novo bloqueio para manter o arcabouço de pé. Sua sustentabilidade, contudo,
depende da revisão de políticas que o próprio governo criou
O esperado novo bloqueio de despesas
públicas, de R$ 5 bilhões, para evitar o descumprimento do limite de despesas,
é apenas mais um remendo no esfarrapado arcabouço fiscal. A pouco mais de um
mês de concluir a metade do mandato, o governo Lula da Silva ainda tem de
recorrer a medidas paliativas para cumprir o limite inferior da meta, que prevê
um rombo de até R$ 28 bilhões neste ano.
Para fechar 2024 no centro da meta fiscal,
com déficit zero, como prevê o arcabouço, o governo necessitaria de um
incremento adicional de R$ 42,3 bilhões na arrecadação do último bimestre,
segundo cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão de
monitoramento vinculado ao Senado.
Para a IFI, este não parece ser um cenário
factível, pois demandaria surpresas ou uma ajuda extra – e isso apesar dos 11
recordes mensais sucessivos na arrecadação, que levaram a receita pública
federal a acumular R$ 2,18 trilhões até outubro.
O motivo é simples como os conceitos da
aritmética básica: as receitas têm sido em muito superadas pelas despesas. E o
mais recente Relatório de Acompanhamento Fiscal da IFI deixa muito
claro o porquê. Medidas pactuadas antes mesmo da posse de Lula da Silva e ações
adotadas no primeiro ano de sua gestão tornaram ainda mais complexo o frágil
equilíbrio das contas públicas.
O relatório confirma o que este jornal tem
apontado com insistência sobre as consequências de medidas mal planejadas e
movidas por aspirações eleitoreiras e populistas, como as que marcam a economia
sob o bastão de Lula da Silva. As quatro políticas públicas mais custosas ao
erário tiveram precisamente esse perfil.
São elas a manutenção do benefício de R$ 600
para o Bolsa Família, uma deferência feita no período mais crítico da covid-19
e que deveria ter sido revista após a pandemia; o reajuste do salário mínimo,
atrelado também ao crescimento econômico, além do cálculo pela inflação; a
indexação dos pisos para Saúde e Educação às receitas, e não mais limitadas à
inflação, como estabelecia o teto de gastos; e a criação de mais dois fundos
públicos para promover o desenvolvimento regional e compensar benefícios fiscais
como contrapartida à aprovação da reforma tributária.
Juntas, essas quatro políticas públicas vão
gerar um custo entre R$ 2,3 trilhões e R$ 3 trilhões em uma década. São medidas
com peso permanente, não apenas pontual. Assim sendo, para garantir um
rearranjo estrutural nas contas públicas, o tão esperado pacote de despesas
deveria revê-las, assim como apresentar medidas para conter o avanço
exponencial dos gastos com previdência e assistência social.
Mas, ao que tudo indica, Lula da Silva parece
propenso, quando muito, a alterar as regras na política de valorização do
salário mínimo. Talvez tenha sido convencido de que elevar de forma tão intensa
o piso pode escancarar a insustentabilidade do arcabouço fiscal antes mesmo do
fim de seu mandato – algo que, aliás, já começa a acontecer.
Bloqueios, como se sabe, não são cortes, mas
apenas uma espécie de congelamento para limitar o aumento do gasto a 2,5% ao
ano, já descontada a inflação. E é muito preocupante que tenha de se recorrer a
eles em um momento de arrecadação vigorosa, pois isso revela o tamanho da
dificuldade do governo para manter as contas minimamente equilibradas.
No acumulado até outubro, o País registrou o
melhor resultado de toda a série histórica, iniciada em 1995. As receitas
tiveram alta de 9,69% em relação a igual período de 2023, já descontada a
inflação. Junte-se a isso a contribuição bilionária da Petrobras, que acaba de
anunciar a distribuição de dividendos extraordinários de R$ 20 bilhões, o que
renderá ao Tesouro um repasse total de R$ 23,46 bilhões no ano.
Contar somente com receitas para cumprir a
meta fiscal não é, nem nunca foi, uma decisão prudente, sobretudo quando não se
mexe na dinâmica das despesas. O fato de que nem mesmo os recordes históricos
de arrecadação facilitaram o trabalho da equipe econômica na busca da meta
fiscal deixa muito claro onde o problema de fato está. E o relatório da IFI
aponta quem é o maior responsável por isso.
Antecipação de julgamento
O Estado de S. Paulo
Ministros têm falado demais sobre casos que
ainda vão julgar. Já passou da hora de a mais alta instância do Judiciário
contribuir para serenar ânimos e cuidar melhor de sua legitimidade
Há poucos dias, como se sabe, um sujeito
radicalizado pelo discurso bolsonarista contra as instituições democráticas
arremessou um explosivo em direção ao Supremo Tribunal Federal (STF) pouco
antes de detonar outro artefato que trazia junto ao próprio corpo, morrendo no
local. Logo após esse trágico episódio, veio a público a informação de que a
Polícia Federal (PF) teria descortinado uma conspiração entre militares de alta
patente e autoridades civis para, supostamente, assassinar o presidente Lula da
Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, a fim de
manter Jair Bolsonaro no poder após sua derrota eleitoral em 2022.
Não seria razoável esperar que o Supremo
Tribunal Federal permanecesse em silêncio diante desses e de outros gravíssimos
atentados e ameaças que tanto a instituição como os seus ministros têm sofrido
– e não de agora. Mais do que os vitupérios que são dirigidos à Corte nas redes
sociais, mas não só, desde que Bolsonaro a alçou à condição de “inimiga do
povo”, as ameaças à integridade da sede da mais alta instância do Judiciário
brasileiro e, principalmente, à vida de seus ministros e familiares ganharam
uma proporção inaudita na história recente do País. É dever de qualquer
democrata que se preze repudiar essa violência extrema nos mais veementes
termos.
O Supremo Tribunal Federal, contudo, deveria
manifestar sua condenação às agressões de que tem sido vítima constante de
forma mais serena e republicana. A Corte deveria responder como a instituição
fundamental que é para o País. Alguns ministros, entretanto, escolheram a via
da espetacularização, do individualismo e, é forçoso dizer, da ilação, o que
nem remotamente se coaduna com o comportamento que se espera de magistrados.
Até agora, o que tem sido visto é uma clara demonstração de sucumbência de alguns
ministros ao calor dos holofotes.
O correto para uma Corte Suprema ciosa de seu
papel institucional, para um tribunal que deseja ser visto e reconhecido pela
sociedade por sua imparcialidade e sobriedade até nas horas mais dramáticas,
seria se manifestar apenas por meio de uma nota oficial, quando avaliar ser o
caso. Se assim o fizesse, o Supremo Tribunal Federal poderia, a um só tempo,
condenar cada um desses ataques infames, exortar as autoridades incumbidas das
investigações a realizar seu trabalho com profissionalismo e espírito público
e, por fim, reforçar a defesa da democracia como o único regime capaz de trazer
paz e progresso para todos os cidadãos. Tudo mais haverá de ser dito pelos
ministros se e quando esses casos chegarem à fase de julgamento pelo colegiado.
Mas há ministros que parecem incapazes de
esperar e se permitem emitir opiniões sobre os casos como se já estivessem
votando para condenar ou absolver os indiciados que nem réus ainda são. No
episódio mais recente, o decano da Corte, ministro Gilmar Mendes, concedeu
longa entrevista à GloboNews na qual não só esteve à vontade para comentar as
investigações em andamento contra Bolsonaro e outros implicados pela Polícia
Federal, como ainda rebateu os argumentos dos bolsonaristas que provavelmente
serão os mesmos argumentos dos advogados dos acusados se o caso chegar ao
Supremo Tribunal Federal. Mas o sr. Mendes não é o único, infelizmente.
Recorde-se que os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes não
esperaram sequer o cheiro de pólvora se dissipar na Praça dos Três Poderes para
estabelecerem o liame entre as explosões detonadas pelo bolsonarista Francisco
Wanderley Luiz e os atos golpistas do 8 de Janeiro de 2023.
Cada ministro que lide com sua consciência,
mas uma coisa é certa: o Supremo perde muito como instituição com essa
incontinência verbal de alguns de seus membros, em especial no que concerne à
legitimidade de suas decisões. E com isso, claro, perde o País.
A banalidade da morte em SP
O Estado de S. Paulo
Por nada, um jovem foi assassinado à
queima-roupa por um PM claramente mal treinado
Mata-se com muita facilidade em São Paulo.
Noticia-se com frequência macabra o assassinato de cidadãos durante assaltos,
muitas vezes sem que as vítimas tenham esboçado qualquer reação. Mas de
bandidos, afinal, não se deve esperar contenção nem respeito a padrões
civilizatórios. Já de policiais, em tese treinados para o uso controlado e
proporcional da violência, espera-se que só efetuem disparos letais em último
caso. Afinal, o trabalho policial não é matar, e sim impedir crimes e prender
suspeitos. Porém, como se viu no trágico caso do assassinato de um estudante de
Medicina após uma abordagem policial na zonal sul da capital paulista dias
atrás, há policiais evidentemente despreparados para vestir a farda. Se houver
mais policiais militares (PMs) como o soldado Guilherme Macedo nas ruas, que
Deus nos proteja.
O caso ainda está em investigação. Mas, do
que se sabe até aqui, o estudante Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos,
provocou a fúria dos policiais que o abordaram ao dar um tapa no espelho
retrovisor da viatura em que estavam, como mostram as imagens de uma câmera na
rua. Aliás, até a tarde de ontem, dois dias depois do crime, não haviam
aparecido imagens das câmeras dos uniformes dos policiais – se é que existem.
Tudo o que se viu desse episódio que terminou em morte foi documentado por
câmeras particulares de segurança, em fragmentos de imagens que não permitem
conhecer o desenrolar dos fatos em sua íntegra.
Nas cenas disponíveis, o jovem, desarmado,
sem camisa e aparentemente atordoado, corre dos policiais, reage à abordagem e,
quando já estava no chão, sem qualquer chance de matar os PMs, é alvejado por
um deles no abdômen. Simples assim.
Em entrevista ao Estadão, antes mesmo de
enterrar o filho, a médica Mônica Cardenas Prado, de 57 anos, lançou a pergunta
óbvia: “A Polícia Militar de São Paulo está matando por um retrovisor?”.
É o que parece. Tudo o que se viu naquela
sequência terrível de imagens revela o descumprimento de protocolos e regras de
abordagem pelo soldado da PM paulista, supostamente uma das mais bem treinadas
e equipadas do País.
Por óbvio, matar alguém deveria ser o último
recurso ao qual um agente do Estado deveria recorrer. Mas o PM, agora afastado
de suas funções e indiciado por homicídio doloso, ignorou o uso progressivo da
força. Não recorreu a armas não letais, como taser e cassetete, nem aplicou um
golpe capaz de imobilizar o estudante.
O governador Tarcísio de Freitas, que costuma
justificar a violência da polícia que comanda, demorou 40 horas para condenar a
ação dos policiais, dizendo que “essa não é a conduta que a polícia do Estado
de São Paulo deve ter com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância”. De acordo
com Tarcísio, “abusos nunca vão ser tolerados e serão severamente punidos”.
É o mínimo, mas o governador precisa assegurar que seja um caso isolado. Sabe-se que Tarcísio e seu secretário de Segurança, Guilherme Derrite, são entusiastas de uma polícia que desperta medo. Mas, quando são os cidadãos inocentes que devem temer a polícia, é sinal de que a coisa não vai bem.
Democracia e garantias do processo legal
Correio Braziliense
Apesar da gravidade do indiciamento de
Bolsonaro e mais 36 por tentativa de golpe, não cabem penas antecipadas. É
preciso assegurar o devido processo legal
São estarrecedores, inaceitáveis e execráveis
os fatos apontados pela Polícia Federal no indiciamento do ex-presidente Jair
Bolsonaro e mais 36 pessoas — entre as quais os cinco generais de quatro
estrelas — por tentativa de golpe de Estado e associação criminosa, em 8 de
janeiro de 2023. Sem falar o fato de que há quatro militares e um policial
federal presos por supostamente planejarem o assassinato do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e do ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes logo após as eleições de
2022.
O caso segue em investigação. Certamente,
haverá novos desdobramentos — sobretudo a partir do depoimento do
tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, ao ministro
Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito, nesta quinta-feira, que
incrimina o ex-ministro da Casa Civil e da Defesa Braga Netto e compromete
Bolsonaro. Há que se analisar todas as provas, seguindo os ritos legais, para
punir exemplarmente os envolvidos.
O ex-presidente é suspeito de ter participado
de conspirações para se manter no poder, incentivar a desconfiança nas urnas
eletrônicas e incitar os ataques às sedes dos Três Poderes, cujos palácios
foram invadidos por radicais e depredados em 8 de janeiro de 2023. Indiciado em
outros processos, Bolsonaro teve negado pelo STF um habeas corpus preventivo e
é apontado como um dos responsáveis pelos prejuízos calculados em R$ 26 milhões
provocados pelos atos de vandalismo.
O STF, até agora, condenou 268 pessoas pelos
atos antidemocráticos de 8 de janeiro, com penas que variam de três a 17
anos.Também foram feitos 476 acordos de não persecução penal — casos em que não
houve violência e o réu admitiu a culpa, com pena inferior a quatro anos,
mediante pagamento de multas e prestação de serviços comunitários.
O desenrolar desse processo será um marco
para a consolidação da democracia no Brasil, ainda mais porque militares de
alta patente, que supostamente planejaram a tentativa de golpe, serão julgados
pela Justiça civil pela primeira vez. Sabe-se que é uma situação atípica, por
qualquer ângulo que se olhe. Inclusive a existência de um inquérito aberto por
ofício pelo então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para investigar
fake news e ameaças aos integrantes da Corte, agora comprovadas.
Em qualquer processo penal, os réus têm
direitos assegurados pela Constituição Federal e por tratados internacionais
dos quais o Brasil é signatário.Esses direitos garantem um julgamento justo e a
proteção contra abusos. Há, portanto, que se respeitar o contraditório e a
ampla defesa. Os réus têm direito de conhecer as acusações e se defender com
todos os recursos cabíveis.
O Brasil é signatário do Pacto de San José da
Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que reforça o direito
a ser ouvido por um tribunal competente, independente e imparcial. Apesar da
gravidade do caso, não cabem penas antecipadas. É preciso assegurar o devido
processo legal para que realmente a democracia prevaleça em relação ao
arbítrio, e não o contrário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário