O Estado de S. Paulo
Cabe perguntar como deve autuar o ‘campo
progressista’ para deslocar o centro de gravidade da vida política para um
ponto melhor de equilíbrio
A ação política precisa mobilizar sentimentos
para ser efetiva. Estatísticas e argumentos racionais bem construídos têm poder
limitado no convencimento do eleitor.
Essa constatação nos coloca diante de um
desafio. Como reconquistar apoio sólido à política democrática sem apelar de
modo irresponsável a sentimentos muitas vezes cristalizados em paixões e
preconceitos nem esquecer que a razão é indispensável para bem governar e assim
responder às aspirações, desejos e inseguranças das pessoas? Sem uma resposta
pronta para essas perguntas, faço aqui apenas um primeiro exercício para
entender o percurso das paixões políticas nos últimos 30 anos.
Entre 1994 e 2014, os partidos que
protagonizaram a consolidação da democracia no Brasil souberam despertar
esperança. O PSDB o fez em tom menor, sem paixões, pelo próprio estilo de suas
lideranças. Foi um partido de quadros tecnicamente qualificados. Com o Real,
criou a esperança de um país mais estável e moderno. O PT despertou esperança
em tom maior por ser um partido de massas, com origem popular, e pela
trajetória extraordinária de vida de sua principal liderança. Em torno da
figura de Lula da Silva se criou um relato épico de superação de injustiças
sociais seculares.
As esperanças suscitadas pelos dois partidos se sustentaram por um bom tempo e se concretizaram parcialmente. Foram esperanças encadeadas (não por deliberação das lideranças). Dito de modo simples, sem o Real e a arrumação institucional que permitiu, Lula não teria obtido sucesso na Presidência. Depois de 20 anos, a esperança se exauriu, em parte por erros, que não devem ser varridos para debaixo do tapete, em parte pela própria dinâmica das expectativas que, uma vez satisfeitas, crescem para outro patamar.
A esperança cedeu lugar ao medo. Uma nova
direita soube trabalhar esse sentimento com competência. Conseguiu articular um
relato abrangente das falhas e promessas não cumpridas do período anterior,
darlhe um caráter moral, identificar um inimigo a abater e definir uma
estratégia de combate. Problemas reais, como a insegurança pública, a
ineficiência do Estado, as adversidades de pequenos e médios empresários e
empreendedores, a desestruturação familiar nas camadas mais pobres, passaram a
ser vistos, cada vez mais, como sintomas de uma corrupção moral generalizada
que não apenas servia aos interesses do “sistema”, mas também obedecia a um
plano para submeter o País, as famílias e os indivíduos a ideologias exógenas e
perversas. Nessa toada, o medo virou pânico e o conservadorismo se tornou
reacionário e propenso ao autoritarismo.
Há indícios de que o País recobra certa
normalidade. Mas ainda é cedo para saber se o conservadorismo – uma posição
política e doutrinária respeitável, e importante numa sociedade aberta e
democrática – conseguirá se diferenciar e se sobrepor ao reacionarismo
conspiranoico que se expressa em Jair Bolsonaro, mas vai além dele.
Para quem se coloca na outra margem do rio,
mas sabe que as águas da democracia precisam reencontrar um leito comum, é
preciso fazer uma constatação e uma pergunta. O País dobrou à direita e não dá
sinais de que pretenda dobrar de novo à esquerda no futuro previsível. Diante
dessa constatação óbvia, cabe perguntar como deve autuar o “campo progressista”
para defender conquistas fundamentais obtidas no momento de sua ascensão
política e deslocar o centro de gravidade da vida política brasileira para um ponto
melhor de equilíbrio.
Dessa perspectiva, vejo com bons olhos o
debate que se esboça no interior da esquerda, ciente de que vem perdendo
terreno. Tem razão o ministro Fernando Haddad ao dizer que ela precisa rever
convicções que envelheceram mal e reafirmar seus valores em um projeto
contemporâneo orientado por um horizonte utópico (viável, acrescentaria eu).
Não é preciso ceder à mistificação do “empreendedorismo” para responder às
aspirações legítimas de milhões de trabalhadores por conta própria, que querem
conciliar autonomia e maior proteção.
Sem perder de vista o horizonte de longo
prazo, existem desafios mais imediatos. O governo Lula ainda pode desempenhar
um papel realmente importante para desinflar o bolsonarismo. Não deve levar
água para o moinho do pânico moral que move as engrenagens da extrema direita.
O Lulinha paz e amor do seu primeiro mandato está fazendo falta. Maior
autocontenção da primeira-dama também ajudaria.
Na agenda substantiva, a mudança de posição
frente à Venezuela é um passo na direção correta, ainda que tardio. Já a
política em relação às estatais é uma corrida na direção errada. Mesmo os que
não creem em teorias conspiratórias se perguntam se não voltará a ocorrer o que
foi feito no verão passado. Os desvios da Lava Jato e a revolta moral seletiva
da direita não apagaram da memória a corrupção nem extinguiram os sentimentos
que ela provoca.
Meu desejo para 2026 é um país com menos medo
e mais esperança e uma eleição disputada com maior civilidade e conteúdo
substantivo. Será uma utopia? Se for, se trata de torná-la viável.
*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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