sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Tempos de incerteza - Fernando Gabeira

O Estado de S. Paulo

A democracia liberal não é o ponto de chegada da experiência humana, como pensava Fukuyama. Resta saber se sobrevive onde sempre foi considerada um exemplo planetário

As eleições americanas são o fato mais importante do ano, que por sinal está acabando. São tantos os caminhos para interpretar sua influência que é preciso separá-los para evitar o labirinto.

Do ponto de vista da democracia, a vitória de Donald Trump é preocupante. Ele estimulou a invasão do Capitólio, duvidou abertamente do resultado das urnas em 2020 e promete vingança contra seus adversários.

Há uma suposição de que o autoritarismo não triunfa nos EUA. Não podemos esquecer aquele célebre artigo de Francis Fukuyama para quem a democracia liberal era a forma política final do gênero humano.

De lá para cá, os regimes autoritários cresceram, adotaram métodos capitalistas, aumentaram a renda per capita das pessoas e oferecem até um certo orgulho nacional, no lugar do desejo por liberdade e direitos políticos. Segundo o professor Robert Stefan Foa, em 1995 as pessoas com renda per capita acima de US$ 20 mil viviam em 96% dos casos em democracias liberais. Apenas 34 milhões viviam em países não democráticos. Hoje há 315 milhões com renda per capita acima desse limiar que vivem em países dominados pelo autoritarismo.

No passado, supunha-se que havia um claro limiar no qual o regime autoritário não oferecia melhoras e seria irresistivelmente pressionado a adotar a democracia. Hoje são as democracias liberais que oferecem pouca margem de crescimento e estão sob forte pressão.

Trump é um produto desta época em que líderes autoritários parecem bem-sucedidos, o que fortalece sua intrínseca atração por eles.

Num país polarizado onde brotam comunidades de sobreviventes, entrincheirados em ranchos, com comida e água por muito tempo e armados até os dentes, é muito possível que a violência política fortaleça o caminho autoritário.

Quanto à proposta econômica de Trump, ela tem um conteúdo contraditório: ele quer taxar as importações e, simultaneamente, reduzir a inflação.

O resultado trará um grande impacto nos países exportadores, inclusive o Brasil, cujo comércio com os EUA gira em torno de US$ 30 bilhões.

O que deve ter influenciado eleitoralmente foi a inflação.

Um outro impacto espera os países latinos: a política de Trump para os imigrantes. Ele tem prometido deportação em massa de imigrantes ilegais e tudo indica que fará isso com o apoio dos próprios americanos, que se sentem ameaçados nos seus empregos ou acham que os estrangeiros furam a fila nos balcões da assistência social.

A política ambiental será uma das principais vítimas. Trump sairá de novo do Acordo de Paris e a sua delegação virá a Belém, para a COP-30, disposta a detonar as principais saídas coletivas para deter o aquecimento global.

Por que enfatizar meio ambiente e imigrantes se houve dois candidatos com políticas diferentes? A verdade é que em ambos os temas Kamala Harris teve de fazer concessões ao discurso de Trump. Claro que sua vitória não traria e expatriação em massa, muito menos a saída do Acordo de Paris. Mas ela já tem um tom mais severo diante da imigração e aceitou o fracking, praticamente endossando o slogan de Trump: Drill, baby, drill.

Isso quer dizer “perfure, perfure”. O fracking é uma técnica usada para extrair petróleo e gás natural de formações rochosas. Consiste na injeção de água, areia e produtos químicos em alta pressão para criar fissuras nas rochas. Foi importante na produção americana, mas é sobretudo um forma de contaminação das águas subterrâneas. Petróleo ou água? É uma escolha importante no século 21. O fracking teve um papel na eleição da Pensilvânia. Kamala tentou fugir da derrota no Estado.

Na verdade, a política ambiental democrata foi atingida também pela guerra na Ucrânia. Joe Biden acabou autorizando a exploração de petróleo no Alasca, na região de North Slope. E, quando se trata de guerra, as nuances ficam mais complicadas ainda. Trump possivelmente deixará a Ucrânia se defender sozinha, ou apenas com a ajuda europeia. E, no Oriente Médio, provavelmente manterá um apoio incondicional a Israel. Isso significa que a discreta tentativa norte-americana de evitar o massacre de civis em Gaza sairá de cena. Da mesma forma, os esforços para evitar uma guerra regional.

Nesse ponto, a posição democrata que mantém o apoio a Israel, sempre pedindo prudência, acabou sendo a menos bemsucedida em termos eleitorais. Os árabes puniram Joe Biden pela sua ambiguidade e acreditaram em Trump, que prometeu acabar com a guerra.

Nas pesquisas de boca de urna, 70% dos entrevistados disseram que os EUA estavam no rumo errado. Certamente, havia um julgamento sobre a política econômica de Biden e seus reflexos no cotidiano. Esperava-se que a questão dos direitos reprodutivos da mulher, a defesa do aborto por Kamala Harris, fosse um ponto decisivo. Não foi, apesar de sua importância.

Esta eleição parecia de Trump desde o início, pois ele definiu a pauta e ocupou um imenso espaço como perseguido. The Economist chegou a publicar um texto sobre a trumpização da política americana: os democratas apenas reagiram.

A democracia liberal não é o ponto de chegada da experiência humana, como pensava Fukuyama. Resta saber se sobrevive onde sempre foi considerada um exemplo planetário.

 

4 comentários:

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  2. Anonimos fora? Covardes. MAM

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  3. Será que ele governa por quatro anos,eu tenho minhas dúvidas,em todo caso,desejo-lhe boa sorte!

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  4. É preciso saber ler as prioridades do eleitorado para conquistar os votos necessários. Ideologia e academicismos podem ser um tiro no pé. (MO)

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