Folha de S. Paulo
A eleição americana põe em xeque os conceitos
de calcificação política, reação branca e fim do voto econômico
O resultado das eleições americanas abalou consensos entre cientistas políticos. Há pelo menos três questões que merecem destaque. A primeira é o que a política parece ter sofrido uma "descalcificação". Havia certa convergência em torno do argumento que o sistema estava calcificado devido a crescente sobreposição entre raça, religião, gênero, faixa etária e preferências partidárias, como mostrei aqui. Levitsky e Ziblatt argumentaram que a ascensão de Trump era uma reação da população branca de se tornar minoria nas próximas décadas. Estas análises envelheceram surpreendentemente rápido.
O que se observou nas eleições são mudanças
significativas em quase todas os segmentos. A maioria de mulheres e negros
ainda votam no candidato democrata mas o fosso entre homens e mulheres ou
negros e outras etnias diminuiu espetacularmente. A margem de vitória de Biden
na população latina, por exemplo, que foi de 33% em 2020, caiu para 6% em 2024.
Em 89% dos condados houve mudança.
Trump aumentou seu percentual de votos entre
homens, mulheres, faixas etárias (maior proporcionalmente entre os jovens entre
18 e 29), com e sem curso superior, áreas rurais e urbanas. Entre homens negros
a reação teve por base pautas de comportamento. Há evidências experimentais
também de reações ao uso de expressões como "Latinx".
Em New Jersey, na Grande Nova York, a margem de vitória dos democratas caiu de
16% para 5%.
A segunda controvérsia diz respeito aos
determinantes do sucesso eleitoral da direita radical. Para muitos analistas
ele refletiria uma mudança nas preferências do eleitorado que teria
"virado à direita". Mas há evidências sólidas de que as preferências
do eleitorado com relação a temas econômicos ou culturais/comportamentais
mudaram pouco. O nível de concordância do eleitorado em relação a questões como
aborto ou casamento homoafetivo não mudou. Os temas econômicos perderam
centralidade em relação a temas como imigração, nativismo e pautas
comportamentais. O que efetivamente alterou foi a prioridade conferida a estas
questões vis-à-vis, por exemplo, política social, como argumentam Gidron et al
em estudo seminal.
A eleição de Trump, no entanto, parece ir na
direção oposta à convergência de análises sobre as novas prioridades. O
resultado sugere a centralidade do chamado voto econômico. No entanto, as
evidências são mistas. O nível do índice de infelicidade (taxa de inflação +
taxa de desemprego) em 2024 é o segundo menor em 50 anos. Mas isto contrasta
com o fato de que 78% dos eleitores concordarem que o país está indo na direção
errada.
Esta percepção negativa nos leva a uma
terceira questão controversa sobre ao chamado efeito incumbência. Aqui a
expectativa é que os incumbentes levem vantagem (ocorre em 66% dos casos).
Algumas estimativas avaliam este efeito para os EUA entre 4% a 8% (dados
históricos cobrindo 216 anos). Mas não foi o que se viu. Na realidade, não só
na eleição americana mas também no resto das democracias em geral, os
incumbentes estão perdendo massivamente. Segundo John Burn-Murdoch nas eleições
de 2024, todos os governantes no poder perderam fatias expressivas do voto, a
primeira vez que o fenômeno ocorre desde 1947! Assim, Trump não teria ganho;
Biden é que teria sido punido.
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