Folha de S. Paulo
Brasil é vanguarda no sistema de votação e apuração, mas joga na retaguarda na relação do Estado com o cidadão-eleitor
A abstenção de
quase 30% no país nas eleições municipais
assustou muita gente e despertou no Tribunal Superior Eleitoral a necessidade
de se fazer um estudo profundo para saber as razões dessa acentuada ausência do
eleitor.
Se somadas as quantidades de sufrágios
em branco e
nulos, a conta beira os 40% e, em números absolutos, mostra que
vários candidatos perderam para o não voto.
Pela relevância dos dados e das motivações implícitas, a recusa à participação ativa foi um dos assuntos mais comentados nos balanços dos chamados recados das urnas.
Rivalizou com o sucesso da
centro-direita, o mau desempenho da esquerda, a força das emendas
parlamentares na reeleição e a constatação de que Luiz Inácio
da Silva (PT) e Jair
Bolsonaro (PL) não mandam na vontade das pessoas, mais
interessadas na administração das respectivas cidades do que na briga dos
chefes das torcidas da política nacional.
A encomenda do TSE para
se estudar a abstenção nos detalhes sem dúvida é muito útil, pois uma vez
concluído o trabalho vai se poder abordar o assunto com precisão, sem chutes
nem ilações que possam distorcer as conclusões.
Não é necessário, porém, ir às profundezas
sociológicas das raízes do Brasil para se chegar a alguns dos porquês de
parcela crescente do eleitorado fazer do voto
obrigatório —regido por regras de 1965, na ditadura— quase uma
letra morta, quando em outro tempo já foi preferência nacional.
A cada nova pesquisa sobre o tema, porém, o
facultativo ganha terreno e já representa a maioria. Segundo levantamento
do Datafolha de
2020, 56% são contrários à obrigatoriedade.
Outra consulta feita em agosto de 2024, na
capital paulista, registrou índice de 52%. Agora em outubro 34% dos paulistanos
disseram ao mesmo instituto que não teriam votado se não fossem obrigados. A
abstenção segue o ritmo de crescimento; foi de 16,2% em 2000, quase metade do
índice atual.
O que está havendo? Antes de falar sobre o
descrédito na política e o comportamento dos partidos, vamos a outras hipóteses
menos dramáticas para explicar: o aumento da população maior de 70 anos de
idade, que não é obrigada a votar e a cada vez maior facilidade para se justificar
ausência.
Sobre esse segundo ponto, um parêntese: por
que tenho de dizer ao Estado onde estou no dia da votação ou lhe dar satisfação
sobre uma decisão privada de não exercer um direito?
E aqui chegamos aos partidos e aos políticos
que muitas vezes tampouco se obrigam a dar satisfações aos cidadãos. Assumem
atitudes —notadamente nos períodos de entressafra eleitoral— de total
indiferença ao que lhes diz a sociedade.
Acontece, por exemplo, quando aprovam fundo
eleitoral de R$ 5 bilhões, anistiam as próprias dívidas e se articulam para
afrouxar a Lei da Ficha Limpa aprovada na pressão por um projeto de iniciativa
popular. Isso para citar casos mais recentes. Ao longo da história (só da
redemocratização) há uma coleção deles.
Cada vez mais livres de cobranças,
desobrigados de prestar contas sobre a folha corrida dos candidatos escolhidos
para concorrer, montados numa dinheirama pública cujos eventuais ilícitos são
objeto de anistia autoconcedida, as agremiações partidárias viraram ilhas
voltadas para seus interesses.
Caso precisassem atuar como entidades de
direito privado que são, indo à luta para amealhar recursos e empenhar esforços
para conquistar o eleitorado, não tivessem a reserva de mercado do voto
obrigatório provavelmente outros galos cantariam na política nacional.
O Brasil está na vanguarda no sistema
eletrônico de votação e apuração. Não faz sentido nem combina com tais avanços
que se mantenha na retaguarda na relação do Estado com o cidadão que, se
estimulado, poderia se transformar num eleitor mais bem disposto a ir às urnas.
Ou se ausentar sem precisar se justificar.
Perfeito !
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