O fato foi abordado pela imprensa de praticamente todo o mundo como uma grande novidade (a world-first). A reação das bigtechs foi imediata e não causou surpresa. A Meta, dona do Facebook e Instagram, disse que "a lei foi votada às pressas e é difícil de ser aplicada". O Snapchat adevertiu que a aplicação dessa lei pode ter "consequências inesperadas". A mais feroz oposição veio do X, em postagem de Elon Musk. Ele a define como "um caminho pela porta dos fundos para controlar o acesso à internet por todos os australianos."
Esta lei, no entanto, não foi criada de uma hora para outra. Nem foi um impulso imediato em resposta a casos recentes de danos físicos e mentais sofridos por adolescentes por estarem expostos ao conteúdo de certas plataformas. Meses antes, sintomas já eram bem visíveis de que isso iria ocorrer.
Em 21 de junho deste ano, no artigo "Um cacique intocável na aleia de McLuhan" eu abordei o tratamento dado a um episódio de facadas, por canais individuais nas redes e também pela mídia empresarial. Na tarde de 13 de abril deste ano, um homem de 40 anos, Joel Cauchi, um australiano de Queensland, sofrendo de um transtorno mental, esfaqueou várias pessoas, matando 6 e ferindo 12 — entre estes um bebê de nove meses. Isso num shopping centre em Sydney. Seguranças e polícia agiram imediatamente e o agressor acabou abatido pelo tiro de uma policial. Cerca de uma hora depois do atentado, o subcomissário de polícia afirmou que não houve "nenhuma informação, evidência nem inteligência coletada" que indicasse que o que ocorreu fosse um ato de terrorismo ou motivado por qualquer tipo de ideologia. O assassino, como comprovado, estava acometido de uma crise da sua condição mental.
No entanto, em pleno uso dessa tão "ameaçada" liberdade de expressão, o episódio foi de imediato noticiado por alguém, dentro do X — e para mais de um milhão de seguidores —, desta forma: "Primeira foto do terrorista que matou algumas pessoas em Sydney. Ele esfaqueou numa área de judeus bem próxima a um restaurante israelense". Além das postagens individuais, o Canal 7, um dos 5 maiores canais de TV australianos — e que emprega jornalistas profissionais — noticiou que: "Benjamin Cohen é o assassino e [que] ele já era conhecido da polícia". Seis horas depois o canal colocou no ar um pedido de desculpas pelo engano. No entanto, o jovem Benjamin, um estudante da Sydney University, já tinha sofrido os esperados milhares de abusos e ataques, resultado típico do universo das redes.
Dois dias depois desse atentado no shopping centre, outro episódio de facadas ocorreu uma igreja ortodoxa assíria, na zona Oeste de Sydney. O bispo Mari Emmanuel celebrava uma missa. Durante o sermão ele foi agredido por um rapaz de 16 anos e sofreu vários golpes de faca. O sermão estava sendo transmitido pela internet e o rapaz, subjugado pelos participantes da missa, foi entregue à polícia, que chegou minutos depois.
Como esperado, imagens do esfaqueamento foram postadas de imediato nas redes. Em vista disso, no dia seguinte, a comissária Julie Inman Grand, da Australia eSafety, determinou que X e Meta retirassem os vídeos dos seus canais. "Isto é realmente um conteúdo devastador e que causa danos emocionais, mentais e psicológicos". Ela agiu dentro das normas do Online Safety Act australiano e determinou essa retirada dentro de 24 horas. Meta, Google, Microsoft, Snap e TikTok acataram o pedido. Mas o X preferiu outra abordagem rebatendo: "Nós vamos contestar este approach ilegal e perigoso diante de um tribunal. Ordens de retirada global de postagens vão contra os princípios de uma internet livre e aberta e ameaçam a liberdade de fala em toda parte." O caso foi resolvido fora da corte. O X concordou em bloquear os tais vídeos para os seus usuários australianos, porém os manteve para o resto do mundo.
Fatos como estes, no meu entender, deram mais impulso à elaboração do que agora se tornou lei. Cerca de 6 meses depois do confronto com o X, em 12 de setembro o atual governo federal (Labor), submeteu ao parlamento o projeto aprovado anteontem. Inicialmente o texto previa a aplicação de multas de até 5% do valor total das operações globais das plataformas se elas não agissem e criassem mecanismos para evitar a divulgação de misinformation e disinformation.
Como é de se esperar num ambiente democrático, embora o partido do Governo e o da oposição (Liberal/Nationals) estivessem de acordo desde a submissão do projeto, os Greens, mais alguns independentes e dois senadores da oposição, votaram contra a lei. Alegaram, depois de calorosa discussão, que a votação estaria sendo precipitada e o texto imperfeito. Na Câmara Federal foram 103 votos a favor da lei e 13 contra. No senado foram 34 a favor e 19 contra.
As bigtechs também agiram para que o debate fosse suspenso até que um teste de verificação de idade, por parte do governo, esteja concluído. De acordo com o texto aprovado — que só entrará em vigor em 12 meses — as empresas proprietárias das redes sociais poderão receber multas de até 50 milhões de dólares australianos se não tomarem "medidas razoáveis" para manter os menores de 16 anos fora de suas plataformas. Esse prazo — 12 meses — é o tempo dado às companias para que elas se adaptem ou ajustem seus mecanismos aos termos da nova lei. Aplicativos de mensagens, jogos online e plataformas como o YouTube não serão afetados.
Embora toda a mídia internacional tenha tratado essa lei australiana como a world first, vale citar que em Paris, no ano passado, essas restrições foram impostas a menores de 15 anos. No início deste ano, o estado da Florida baniu menores de 14 anos do uso das redes — o que até agora tem transitado como um desafio no campo "constitucional" deles. E o The Washington Post aponta que "muitos detalhes [desta lei australiana] permanecem vagos, incluindo como as redes sociais poderão verificar a idade dos usuários".
Doze meses me parece um tempo razoável para esses necessários ajustamentos, levando-se em conta o fator velocidade, emblemático das redes sociais.
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