Valor Econômico
Se nos EUA a preocupação do Fed deve ser com buracos na pista de pouso, no Brasil o grande desafio pela frente é a cratera fiscal
Todo piloto de avião experiente sabe que um
pouso suave é mais fácil com condições climáticas favoráveis de vento e
visibilidade, e controle adequado de velocidade e altitude. Mas nada disso é
suficiente para evitar acidentes se, apesar do aparente sucesso na aproximação
inicial, houver buracos na pista de pouso.
Digo isso porque essa parece a situação atual do banco central americano, o Federal Reserve. O consenso da maioria dos analistas econômicos tem previsto um pouso suave da economia americana. Nesse cenário, o crescimento do PIB desacelera gradualmente, mais em linha com o potencial de longo prazo. Enquanto isso, a inflação converge para a meta oficial de 2%, permitindo ao Fed reduzir o juro para mais perto da neutralidade. Esse, por exemplo, era o cenário básico predominante que presenciei nas reuniões recentes do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial em Washington.
Minha opinião? Não vai ser tão simples assim.
Apesar do aparente sucesso do Fed em iniciar um pouso suave neste ano, vejo
buracos na pista de pouso pela frente. Na minha visão, o que preocupa é a
inflação americana permanecer teimosamente acima da meta, questionando a
capacidade do Fed continuar cortando o juro no ano que vem. Pelo contrário,
dependendo da intensidade e velocidade de implementação das intenções de
política econômica anunciadas até agora pelo presidente eleito Donald Trump, eu
não ficarei surpreso se o mercado financeiro em algum momento começar a
contemplar cenários de alta de juros.
Digo isso por duas razões: uma, estrutural; a
outra, cíclica. De forma simplificada, um banco central deve considerar dois
fatores. O primeiro é a taxa de juro estruturalmente “neutra” da economia -
aquela que permite a economia crescer no seu ritmo potencial sem pressões
inflacionárias. O segundo fator a decidir é quão distante desse juro neutro o
banco central deve posicionar o juro básico, dependendo das condições cíclicas
da economia no momento. Quanto mais acima do juro “neutro”, mais restritiva é a
política monetária. Quanto mais abaixo do neutro, mais expansionista.
Simplificadamente: o banco central sobe o juro para esfriar a economia, e corta
o juro para aquecê-la.
No caso da economia americana, tanto o fator
estrutural (o juro “neutro”) assim como o fator cíclico (o grau de aquecimento
da economia) recomendam cautela na condução da política monetária.
Explico. Por vários anos, o juro nominal
“neutro” da economia americana era considerado algo entre 2% e 3%. De fato, a
mediana das projeções dos membros do comitê de política monetária do Fed para o
juro básico da economia no longo prazo costumava apontar para 2,5%. Essa
projeção nominal média já vem subindo para próximo de 3% nos últimos
relatórios, e deve continuar a subir ao longo do ano que vem. Em resumo, a taxa
de juro neutra está subindo, de algo na faixa entre 2% a 3% para, na minha
opinião, algo entre 3% e 4%. Ou seja, há menos espaço hoje do que no passado
para cortes de juro antes de atingir a taxa neutra.
Em segundo lugar, as condições cíclicas da
economia americana sugerem menor espaço para afrouxamento da política
monetária, em face da resiliência do crescimento econômico ao lado da
persistência acima da meta de vários indicadores de inflação subjacente. Isso
será tanto mais verdade quanto mais inflacionárias forem as políticas
econômicas da administração Trump. Há dúvidas, é verdade, sobre a intensidade e
velocidade de real implementação das intenções anunciadas até agora. Mas não há
dúvida de que aumento nas tarifas de importação, restrições à imigração, e
expansão fiscal tendem a pressionar os preços domésticos para cima. A julgar
pelos anúncios feitos até agora pelo presidente eleito, sua plena implementação
certamente complicaria a capacidade de o Fed cortar os juros no ano que vem.
As condições cíclicas sugerem menor espaço
para afrouxar a política monetária, em face da resiliência do crescimento e da
persistência acima da meta de indicadores de inflação subjacente. Isso será
tanto mais verdade quanto mais inflacionárias forem as políticas de Trump
Para o futuro imediato, o consenso do mercado
financeiro é que o Fed anuncie mais um corte de juro de 0,25%, para 4,5%, na
reunião de seu comitê de política monetária nessa semana, continuando assim a
atenuar o grau de restrição monetária. No entanto, a meu ver, uma pausa na
queda de juros está a caminho no início do ano que vem, provavelmente já na
reunião de janeiro, empurrando assim qualquer corte para a reunião seguinte, em
março. Na verdade, suspeito que o presidente do Fed, Jerome Powell, em algum
momento queira começar a preparar o mercado para essa pausa, talvez indicando
que o banco central “não tem pressa” em afrouxar a política monetária, e que
não está comprometido em necessariamente entregar cortes de juros consecutivos,
em todas as reuniões pela frente.
Até onde vai o corte de juros? Para o ano de
2025 como um todo, a julgar pelas intenções anunciadas até agora pelo
presidente eleito, e salvo algum choque recessivo inesperado, acho muito
difícil o Fed cortar o juro abaixo do juro neutro. Uma coisa parece certa: a
plena implementação das medidas anunciadas até agora forçaria o Fed a cortar o
juro menos do que inicialmente se imaginava, e pode introduzir no horizonte o
debate sobre alta de juro.
O que isso significa para mercados
emergentes, como o Brasil? Em primeiro lugar, juros relativamente mais altos
nos EUA tendem a conter os fluxos de capitais para mercados emergentes,
complicando o financiamento de déficits em conta corrente. Em segundo lugar, a
força do dólar americano tende a encarecer a dívida externa (corporativa e
soberana) em dólar de mercados emergentes. Além disso, um dólar forte tende a
enfraquecer os preços de commodities no mercado internacional, especialmente se
o maior consumidor e importador global de commodities (a China) estiver
crescendo mais lentamente - o que não favorece países emergentes exportadores
de commodities, como o Brasil. Por sua vez, o enfraquecimento de moedas de
países emergentes pode alimentar a inflação doméstica.
Ou seja, nada disso parece boa notícia para
países emergentes em geral. Isso dito, olhando para o Brasil aqui de Londres, e
comparando com outros mercados emergentes, fica claro que o desempenho recente
da moeda brasileira tem muito mais a ver com solavancos domésticos
(principalmente no lado fiscal) do que com fatores externos.
Em outras palavras, se nos EUA a preocupação
do Fed deve ser com buracos na pista de pouso, no Brasil o grande desafio pela
frente é a cratera fiscal.
*Marcelo Carvalho é
macroeconomista global, baseado em Londres e PhD em economia internacional pela
Universidade de Illinois em Urbana-Champaign. Foi Diretor Global de Pesquisa
Econômica do Banco BNP Paribas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.