terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Buracos na pista de pouso do Fed - Marcelo Carvalho

Valor Econômico

Se nos EUA a preocupação do Fed deve ser com buracos na pista de pouso, no Brasil o grande desafio pela frente é a cratera fiscal

Todo piloto de avião experiente sabe que um pouso suave é mais fácil com condições climáticas favoráveis de vento e visibilidade, e controle adequado de velocidade e altitude. Mas nada disso é suficiente para evitar acidentes se, apesar do aparente sucesso na aproximação inicial, houver buracos na pista de pouso.

Digo isso porque essa parece a situação atual do banco central americano, o Federal Reserve. O consenso da maioria dos analistas econômicos tem previsto um pouso suave da economia americana. Nesse cenário, o crescimento do PIB desacelera gradualmente, mais em linha com o potencial de longo prazo. Enquanto isso, a inflação converge para a meta oficial de 2%, permitindo ao Fed reduzir o juro para mais perto da neutralidade. Esse, por exemplo, era o cenário básico predominante que presenciei nas reuniões recentes do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial em Washington.

Minha opinião? Não vai ser tão simples assim. Apesar do aparente sucesso do Fed em iniciar um pouso suave neste ano, vejo buracos na pista de pouso pela frente. Na minha visão, o que preocupa é a inflação americana permanecer teimosamente acima da meta, questionando a capacidade do Fed continuar cortando o juro no ano que vem. Pelo contrário, dependendo da intensidade e velocidade de implementação das intenções de política econômica anunciadas até agora pelo presidente eleito Donald Trump, eu não ficarei surpreso se o mercado financeiro em algum momento começar a contemplar cenários de alta de juros.

Digo isso por duas razões: uma, estrutural; a outra, cíclica. De forma simplificada, um banco central deve considerar dois fatores. O primeiro é a taxa de juro estruturalmente “neutra” da economia - aquela que permite a economia crescer no seu ritmo potencial sem pressões inflacionárias. O segundo fator a decidir é quão distante desse juro neutro o banco central deve posicionar o juro básico, dependendo das condições cíclicas da economia no momento. Quanto mais acima do juro “neutro”, mais restritiva é a política monetária. Quanto mais abaixo do neutro, mais expansionista. Simplificadamente: o banco central sobe o juro para esfriar a economia, e corta o juro para aquecê-la.

No caso da economia americana, tanto o fator estrutural (o juro “neutro”) assim como o fator cíclico (o grau de aquecimento da economia) recomendam cautela na condução da política monetária.

Explico. Por vários anos, o juro nominal “neutro” da economia americana era considerado algo entre 2% e 3%. De fato, a mediana das projeções dos membros do comitê de política monetária do Fed para o juro básico da economia no longo prazo costumava apontar para 2,5%. Essa projeção nominal média já vem subindo para próximo de 3% nos últimos relatórios, e deve continuar a subir ao longo do ano que vem. Em resumo, a taxa de juro neutra está subindo, de algo na faixa entre 2% a 3% para, na minha opinião, algo entre 3% e 4%. Ou seja, há menos espaço hoje do que no passado para cortes de juro antes de atingir a taxa neutra.

Em segundo lugar, as condições cíclicas da economia americana sugerem menor espaço para afrouxamento da política monetária, em face da resiliência do crescimento econômico ao lado da persistência acima da meta de vários indicadores de inflação subjacente. Isso será tanto mais verdade quanto mais inflacionárias forem as políticas econômicas da administração Trump. Há dúvidas, é verdade, sobre a intensidade e velocidade de real implementação das intenções anunciadas até agora. Mas não há dúvida de que aumento nas tarifas de importação, restrições à imigração, e expansão fiscal tendem a pressionar os preços domésticos para cima. A julgar pelos anúncios feitos até agora pelo presidente eleito, sua plena implementação certamente complicaria a capacidade de o Fed cortar os juros no ano que vem.

As condições cíclicas sugerem menor espaço para afrouxar a política monetária, em face da resiliência do crescimento e da persistência acima da meta de indicadores de inflação subjacente. Isso será tanto mais verdade quanto mais inflacionárias forem as políticas de Trump

Para o futuro imediato, o consenso do mercado financeiro é que o Fed anuncie mais um corte de juro de 0,25%, para 4,5%, na reunião de seu comitê de política monetária nessa semana, continuando assim a atenuar o grau de restrição monetária. No entanto, a meu ver, uma pausa na queda de juros está a caminho no início do ano que vem, provavelmente já na reunião de janeiro, empurrando assim qualquer corte para a reunião seguinte, em março. Na verdade, suspeito que o presidente do Fed, Jerome Powell, em algum momento queira começar a preparar o mercado para essa pausa, talvez indicando que o banco central “não tem pressa” em afrouxar a política monetária, e que não está comprometido em necessariamente entregar cortes de juros consecutivos, em todas as reuniões pela frente.

Até onde vai o corte de juros? Para o ano de 2025 como um todo, a julgar pelas intenções anunciadas até agora pelo presidente eleito, e salvo algum choque recessivo inesperado, acho muito difícil o Fed cortar o juro abaixo do juro neutro. Uma coisa parece certa: a plena implementação das medidas anunciadas até agora forçaria o Fed a cortar o juro menos do que inicialmente se imaginava, e pode introduzir no horizonte o debate sobre alta de juro.

O que isso significa para mercados emergentes, como o Brasil? Em primeiro lugar, juros relativamente mais altos nos EUA tendem a conter os fluxos de capitais para mercados emergentes, complicando o financiamento de déficits em conta corrente. Em segundo lugar, a força do dólar americano tende a encarecer a dívida externa (corporativa e soberana) em dólar de mercados emergentes. Além disso, um dólar forte tende a enfraquecer os preços de commodities no mercado internacional, especialmente se o maior consumidor e importador global de commodities (a China) estiver crescendo mais lentamente - o que não favorece países emergentes exportadores de commodities, como o Brasil. Por sua vez, o enfraquecimento de moedas de países emergentes pode alimentar a inflação doméstica.

Ou seja, nada disso parece boa notícia para países emergentes em geral. Isso dito, olhando para o Brasil aqui de Londres, e comparando com outros mercados emergentes, fica claro que o desempenho recente da moeda brasileira tem muito mais a ver com solavancos domésticos (principalmente no lado fiscal) do que com fatores externos.

Em outras palavras, se nos EUA a preocupação do Fed deve ser com buracos na pista de pouso, no Brasil o grande desafio pela frente é a cratera fiscal.

*Marcelo Carvalho é macroeconomista global, baseado em Londres e PhD em economia internacional pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign. Foi Diretor Global de Pesquisa Econômica do Banco BNP Paribas.

 

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