O Globo
Quadro atual é parecido com o de 2002. A
diferença é a falta de vontade do presidente de aceitar e topar um ajuste mais
forte
Em setembro de 2002, quando estava claro que
Lula venceria as eleições, o dólar foi a R$ 4 — o equivalente a mais de R$ 8,50
de hoje. Os títulos da dívida do governo brasileiro eram negociados a 40% do
valor de face. Estavam no cardápio dos títulos podres. Mesmo pagando caro, o
Tesouro não conseguia colocar papéis novos no mercado em quantidade suficiente
para rolar a dívida.
Era o governo FH, mas havia medo do futuro
governo Lula. A retórica de campanha havia sido explosiva. Falava em moratória
da dívida pública externa e interna. Com os tradicionais ataques ao Banco
Central e aos especuladores da Avenida Paulista, a Faria Lima da época.
Lula já havia lançado a Carta ao Povo Brasileiro, em junho, documento em que prometia não romper contratos e assegurava que faria um governo responsável. Mas o documento era visto com desconfiança, como uma espécie de truque para enganar os eleitores do centro e, claro, o mercado.
O quadro começou a mudar depois da eleição.
Dois nomes foram cruciais: Antonio Palocci, chefe da campanha, designado
ministro da Fazenda; e Henrique Meirelles, indicado para a presidência do Banco
Central.
Palocci começou a montar uma equipe
claramente ortodoxa. Entendeu-se muito bem com Pedro Malan, o ministro da
Fazenda de todo o governo FH. Praticamente endossou o empréstimo conseguido por
FH junto ao FMI, para engrossar as então minguadas reservas internacionais.
Além disso, já colocou como meta do governo para 2003 um superávit nas contas
públicas de 4,25% — valor nunca alcançado antes.
E Meirelles? Acabara de ser eleito deputado
federal pelo PSDB. E havia sido presidente mundial do BankBoston. É preciso
ressaltar o tamanho da mudança: saindo de um partido que pregava moratória, o
governo Lula coloca no BC um nome da banca internacional.
E mais: a meta de superávit começou a ser
cumprida, e superada, desde o primeiro dia de governo. Foi um choque fiscal.
Tudo mudou: o dólar caiu, a taxa de juro idem, a inflação foi controlada.
Meirelles ficou oito anos comandando o BC, sempre com autonomia.
E como estamos hoje? A dívida pública é um
enorme problema. Quando começou o governo Lula, equivalia a cerca de 70% do
PIB. Em outubro último, alcançou 78,6%, com perspectiva de alta para os
próximos anos, segundo dados do próprio governo. O atual valor já é bastante
superior ao padrão de um país emergente. Um governo que deve mais tem de pagar
juros mais altos para se financiar — como já acontece.
O dólar, que no início do ano estava abaixo
de R$ 5, passou com folga dos R$ 6. Isso porque diminui a entrada de recursos
de fora, pela desconfiança, e aumenta a saída de dólares — investidores e
poupadores buscam segurança no exterior. Dólar mais caro gera inflação, via
importação.
A inflação, que parecia controlada e
caminhava para a meta de 3%, hoje corre acima do teto, de 4,5%. A inflação
corrente, em 12 meses, chegou em novembro a 4,87%. A projeção para 2025 também
está acima do teto da meta.
Dívida em alta, juros subindo, dólar caro,
inflação longe da meta — esses fatores estão interligados. E a roda começa a
girar com a desconfiança a respeito do crescimento da dívida, consequência do
aumento forte do gasto público.
Quando lançou o arcabouço fiscal, o governo
recebeu um voto de confiança. Basta ver as projeções da época: inflação em
queda, dólar estável na faixa dos R$ 5. Depois, economistas começaram a
observar as fragilidades do arcabouço — basicamente o forte crescimento dos
gastos obrigatórios, que representam 92% da despesa total. O próprio ministro
Haddad percebeu o problema, por isso tenta emplacar um programa de corte de
gastos.
O pacote está na direção correta, mas é
insuficiente. Pode ser corrigido mais à frente. Mas está longe de um choque
fiscal estilo 2003. Se o leitor acha que o quadro atual é parecido com aquele
de 2002, acertou. A diferença é a falta de vontade de Lula de aceitar o quadro
e topar um ajuste mais forte. E hoje politicamente mais difícil.
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