sábado, 21 de dezembro de 2024

Lula já superou uma crise fiscal – Carlos Alberto Sardenberg

O Globo

Quadro atual é parecido com o de 2002. A diferença é a falta de vontade do presidente de aceitar e topar um ajuste mais forte

Em setembro de 2002, quando estava claro que Lula venceria as eleições, o dólar foi a R$ 4 — o equivalente a mais de R$ 8,50 de hoje. Os títulos da dívida do governo brasileiro eram negociados a 40% do valor de face. Estavam no cardápio dos títulos podres. Mesmo pagando caro, o Tesouro não conseguia colocar papéis novos no mercado em quantidade suficiente para rolar a dívida.

Era o governo FH, mas havia medo do futuro governo Lula. A retórica de campanha havia sido explosiva. Falava em moratória da dívida pública externa e interna. Com os tradicionais ataques ao Banco Central e aos especuladores da Avenida Paulista, a Faria Lima da época.

Lula já havia lançado a Carta ao Povo Brasileiro, em junho, documento em que prometia não romper contratos e assegurava que faria um governo responsável. Mas o documento era visto com desconfiança, como uma espécie de truque para enganar os eleitores do centro e, claro, o mercado.

O quadro começou a mudar depois da eleição. Dois nomes foram cruciais: Antonio Palocci, chefe da campanha, designado ministro da Fazenda; e Henrique Meirelles, indicado para a presidência do Banco Central.

Palocci começou a montar uma equipe claramente ortodoxa. Entendeu-se muito bem com Pedro Malan, o ministro da Fazenda de todo o governo FH. Praticamente endossou o empréstimo conseguido por FH junto ao FMI, para engrossar as então minguadas reservas internacionais. Além disso, já colocou como meta do governo para 2003 um superávit nas contas públicas de 4,25% — valor nunca alcançado antes.

E Meirelles? Acabara de ser eleito deputado federal pelo PSDB. E havia sido presidente mundial do BankBoston. É preciso ressaltar o tamanho da mudança: saindo de um partido que pregava moratória, o governo Lula coloca no BC um nome da banca internacional.

E mais: a meta de superávit começou a ser cumprida, e superada, desde o primeiro dia de governo. Foi um choque fiscal. Tudo mudou: o dólar caiu, a taxa de juro idem, a inflação foi controlada. Meirelles ficou oito anos comandando o BC, sempre com autonomia.

E como estamos hoje? A dívida pública é um enorme problema. Quando começou o governo Lula, equivalia a cerca de 70% do PIB. Em outubro último, alcançou 78,6%, com perspectiva de alta para os próximos anos, segundo dados do próprio governo. O atual valor já é bastante superior ao padrão de um país emergente. Um governo que deve mais tem de pagar juros mais altos para se financiar — como já acontece.

O dólar, que no início do ano estava abaixo de R$ 5, passou com folga dos R$ 6. Isso porque diminui a entrada de recursos de fora, pela desconfiança, e aumenta a saída de dólares — investidores e poupadores buscam segurança no exterior. Dólar mais caro gera inflação, via importação.

A inflação, que parecia controlada e caminhava para a meta de 3%, hoje corre acima do teto, de 4,5%. A inflação corrente, em 12 meses, chegou em novembro a 4,87%. A projeção para 2025 também está acima do teto da meta.

Dívida em alta, juros subindo, dólar caro, inflação longe da meta — esses fatores estão interligados. E a roda começa a girar com a desconfiança a respeito do crescimento da dívida, consequência do aumento forte do gasto público.

Quando lançou o arcabouço fiscal, o governo recebeu um voto de confiança. Basta ver as projeções da época: inflação em queda, dólar estável na faixa dos R$ 5. Depois, economistas começaram a observar as fragilidades do arcabouço — basicamente o forte crescimento dos gastos obrigatórios, que representam 92% da despesa total. O próprio ministro Haddad percebeu o problema, por isso tenta emplacar um programa de corte de gastos.

O pacote está na direção correta, mas é insuficiente. Pode ser corrigido mais à frente. Mas está longe de um choque fiscal estilo 2003. Se o leitor acha que o quadro atual é parecido com aquele de 2002, acertou. A diferença é a falta de vontade de Lula de aceitar o quadro e topar um ajuste mais forte. E hoje politicamente mais difícil.

 

 

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