terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Marçais, Trumps e a favela - Sérgio Magalhães

O Globo

Famílias em moradias precárias apoiam-se em comunidades religiosas, apostam em salvadores da pátria

O poeta Antônio Cícero há alguns anos, no Instituto de Arquitetos do Brasil, alertou sobre a impropriedade de tratarmos as favelas por comunidade. Para ele, favelas mais se aproximavam do conceito de sociedade, “onde os indivíduos são diversos, e os mais opostos convivem e contribuem uns com os outros”. O filólogo Antônio Houaiss atribui o termo comunidade ao “conjunto de indivíduos com determinada característica comum, inserido em sociedade maior que não partilha suas características fundamentais”.

O IBGE, no Censo de 2010, designava as favelas por “aglomeração subnormal” e, em revisão conceitual, passou a tratá-las por “Favelas e Comunidades Urbanas”. O instituto as caracteriza por lugares com “predomínio de edificações e arruamento autoproduzidos por parâmetros distintos dos definidos pelos órgãos públicos”. E que apresentem “ausência ou oferta precária de serviços públicos”. Assim constatou haver 8,1% da população brasileira vivendo em favelas, em 6,5 milhões de domicílios. (Não só em cidades do Sul-Sudeste; o Estado do Amazonas tem 34,7% da população morando em favelas.)

Convém ampliar o entendimento.

O “predomínio de edificações autoproduzidas” em áreas com “oferta precária de serviços públicos” é uma realidade que talvez alcance metade do Brasil urbano. Portanto não seria próprio apenas de favelas ou de comunidades urbanas.

Entre os censos de 2010 e 2022, o país construiu 24 milhões de domicílios. No período, o principal programa de moradia, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), construiu, se tanto, 25% do total. Em conjuntos residenciais mal localizados e de baixa qualidade arquitetônica, impôs às famílias a adesão irrestrita (subsidiada) ou a autoconstrução.

É essa família que, sem financiamento, é levada a autoconstruir na precariedade construtiva e ambiental, em geral à margem das regras municipais, em favelas ou loteamentos sem infraestrutura. De onde, para se deslocar, gasta exageradas horas em transporte ineficiente e caro. É parte dessas famílias que, em tais condições, apoia-se em comunidades religiosas para vislumbrar mínima coesão social e respeito, nega adesão à política institucional, aposta em salvadores da pátria.

Ao desconsiderar programas de urbanização de favelas e loteamentos populares, beneficiando negócios tipo MCMV, o Estado sinaliza desprezo pelo esforço despendido pelas famílias. Deixou no abandono esses territórios, facilitando a dominação bandida, matriz da insegurança urbana. Ainda, sem política de mobilidade adequada, permite que metrópoles tenham modais de transporte público desarticulados, à mercê de idiossincrasias dos governantes eventuais.

Embora as cidades constituam um patrimônio magnífico, seu quadro urbanístico lastimável tem consequências sociais, econômicas e políticas devastadoras. Nelas vivendo 85% dos brasileiros, lamenta-se que parcelas importantes da população, tragadas pela onda que aumenta as desigualdades e reduz direitos e esperanças, também apostem em seus salvadores de ocasião — ainda que estes, paradoxalmente, possam ser parceiros da promoção dessa mesma onda.

*Sérgio Magalhães é arquiteto e urbanista

 

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