O Globo
Famílias em moradias precárias apoiam-se em
comunidades religiosas, apostam em salvadores da pátria
O poeta Antônio Cícero há alguns anos, no Instituto de Arquitetos do Brasil, alertou sobre a impropriedade de tratarmos as favelas por comunidade. Para ele, favelas mais se aproximavam do conceito de sociedade, “onde os indivíduos são diversos, e os mais opostos convivem e contribuem uns com os outros”. O filólogo Antônio Houaiss atribui o termo comunidade ao “conjunto de indivíduos com determinada característica comum, inserido em sociedade maior que não partilha suas características fundamentais”.
O IBGE, no Censo de
2010, designava as favelas por “aglomeração subnormal” e, em revisão
conceitual, passou a tratá-las por “Favelas e Comunidades Urbanas”. O instituto
as caracteriza por lugares com “predomínio de edificações e arruamento
autoproduzidos por parâmetros distintos dos definidos pelos órgãos públicos”. E
que apresentem “ausência ou oferta precária de serviços públicos”. Assim
constatou haver 8,1% da população brasileira vivendo em favelas, em 6,5 milhões
de domicílios. (Não só em cidades do Sul-Sudeste; o Estado do Amazonas tem 34,7% da
população morando em favelas.)
Convém ampliar o entendimento.
O “predomínio de edificações autoproduzidas”
em áreas com “oferta precária de serviços públicos” é uma realidade que talvez
alcance metade do Brasil urbano. Portanto não seria próprio apenas de favelas
ou de comunidades urbanas.
Entre os censos de 2010 e 2022, o país
construiu 24 milhões de domicílios. No período, o principal programa de
moradia, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), construiu, se tanto, 25% do total. Em
conjuntos residenciais mal localizados e de baixa qualidade arquitetônica,
impôs às famílias a adesão irrestrita (subsidiada) ou a autoconstrução.
É essa família que, sem financiamento, é
levada a autoconstruir na precariedade construtiva e ambiental, em geral à
margem das regras municipais, em favelas ou loteamentos sem infraestrutura. De
onde, para se deslocar, gasta exageradas horas em transporte ineficiente e
caro. É parte dessas famílias que, em tais condições, apoia-se em comunidades
religiosas para vislumbrar mínima coesão social e respeito, nega adesão à
política institucional, aposta em salvadores da pátria.
Ao desconsiderar programas de urbanização de
favelas e loteamentos populares, beneficiando negócios tipo MCMV, o Estado
sinaliza desprezo pelo esforço despendido pelas famílias. Deixou no abandono
esses territórios, facilitando a dominação bandida, matriz da insegurança
urbana. Ainda, sem política de mobilidade adequada, permite que metrópoles
tenham modais de transporte público desarticulados, à mercê de idiossincrasias
dos governantes eventuais.
Embora as cidades constituam um patrimônio
magnífico, seu quadro urbanístico lastimável tem consequências sociais,
econômicas e políticas devastadoras. Nelas vivendo 85% dos brasileiros,
lamenta-se que parcelas importantes da população, tragadas pela onda que
aumenta as desigualdades e reduz direitos e esperanças, também apostem em seus
salvadores de ocasião — ainda que estes, paradoxalmente, possam ser parceiros
da promoção dessa mesma onda.
*Sérgio Magalhães é arquiteto e urbanista
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