O Globo
As redes sociais há muito deixaram de ser, se
é que um dia foram, plataformas digitais neutras em relação ao conteúdo que
nelas circula
Com o que uma rede social (tipo YouTube ou
TikTok) mais se parece: um telefone ou uma televisão? Houve um momento em que a
novidade era imaginar um mundo em que as comunicações fossem livres, em que as
pessoas pudessem falar e ser ouvidas, a custo zero. Engraçado, porque hoje um
celular é tudo, menos um telefone.
Se terroristas combinarem por telefone um atentado aos prédios dos três Poderes em Brasília, por certo ninguém dirá que a companhia telefônica tem alguma responsabilidade. Mas e se o ataque tivesse a forma de uma convocação contra o Estado Democrático, por meio de uma grande rede social? Lembrem-se da campanha de difamação que a maioria budista fez em Mianmar contra a minoria muçulmana. Investigadores da ONU concluíram que os discursos de ódio no Facebook (e a omissão da empresa, apesar dos alertas da comunidade internacional) tiveram papel fundamental no genocídio de muçulmanos naquele país.
As redes sociais há muito deixaram de ser —
se é que um dia foram — plataformas digitais neutras em relação ao conteúdo que
nelas circula. A curadoria feita pelas big techs — chamada moderação por mero
eufemismo — importa, na prática, uma forma de escolha editorial, como aquela
feita por qualquer veículo de comunicação. O que escapa a esse escrutínio é
submetido ao onipresente algoritmo, que dita o que lemos, ouvimos e assistimos,
numa atividade similar à de programação que realizam as mídias tradicionais, ainda
que o conteúdo seja, originalmente, postado por terceiros.
Esse modelo de negócios é financiado pela
publicidade vendida pelas plataformas digitais e exibida antes, durante e
depois da exibição desses mesmos conteúdos que foram moderados, depois
oferecidos pelos algoritmos, programados para atingir os usuários mais
suscetíveis (por que não dizer, vulneráveis) aos apelos de cada conteúdo. Tudo
isso ocorre atualmente sem que as plataformas digitais (as mesmas que moderaram
e programaram os conteúdos) tenham qualquer responsabilidade, nem se diga pelo
conteúdo de terceiros em si, mas pelo que elas mesmas fizeram desse conteúdo.
O julgamento da responsabilidade das
plataformas digitais iniciado no STF dá indícios de que esse estado de coisas
kafkiano se aproxima do fim. Os dois votos já proferidos, pelos ministros Dias
Toffoli e Luiz Fux, declaram a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco
Civil da Internet (que confere imunidade irrestrita às plataformas) e
reconhecem que elas são responsáveis pelos danos que causarem com seus
algoritmos desde o momento em que tomem ciência do caráter nocivo do conteúdo
postado, tal como já previsto na mesma lei para os conteúdos de pornografia de
revanche. A ampla aplicação dessa regra é essencial para que as plataformas
digitais se igualem em responsabilidade a todas as empresas brasileiras (e
também aos cidadãos do país). Na claríssima redação do art. 5º, inciso X, da
Constituição Federal, quem viola a honra de alguém é responsável pela reparação
do dano.
Qualquer solução alternativa, que preserve a
imunidade das plataformas em situações específicas, seria uma grave ofensa às
garantias fundamentais, cláusulas pétreas da Constituição. Por que a honra e a
imagem de alguém deveriam ter proteção inferior às de outros direitos? Para que
as plataformas não tenham de internalizar os custos de uma triagem adequada dos
conteúdos que disseminam com seus algoritmos, como se isso não fosse um cuidado
inerente à atividade que desempenham? Pode uma indústria despejar seu lixo
tóxico em um rio, porque seria excessivamente custoso o tratamento dos dejetos?
A sociedade brasileira tem uma oportunidade
rara de, sem invenções ou malabarismos jurídicos, e sem invadir a competência
do Congresso Nacional, conformar as atividades das plataformas digitais às leis
que regem a vida de todos os demais mortais, declarando a total
inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e consagrando
como regra geral a responsabilidade a partir da ciência do ilícito. É o que já
fizeram a Europa e o Reino Unido, por meio de seus parlamentos. A alternativa é
permitir que a internet continue a ser uma terra sem lei. Caberá ao STF
escolher o caminho que seguiremos.
*Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
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