segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O ‘janjismo’ cultural – Miguel de Almeida

O Globo

Acredito que Janja da Silva já tenha ouvido falar da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. Na dúvida, ajudo: foi uma campanha de consolidação de poder a partir de 1966 contra os “Quatro Velhos” — costumes, cultura, hábitos e ideias. Como saldo, mortes estimadas entre 500 mil e 2 milhões, crise econômica brutal e, no que nos interessa aqui, a destruição do patrimônio histórico e artístico.

Entre outras boçalidades, lembra Rosa Freire d’Aguiar no delicioso “Sempre Paris”, artistas foram enviados ao campo para plantar repolho e camponeses colocados na cidade para fazer cultura. Ninguém se lembra dessas realizações, e obviamente houve desabastecimento de repolho.

É o que deve ficar do espírito do “janjismo” cultural que inspira os resultados do edital da Petrobras. São alegados R$ 250 milhões destinados às diversas áreas da produção artística. De início, rezavam as regras, seriam 30% para as afamadas cotas — gênero, raça e localização geográfica (uma tal desregionalização). Terminaram por ser 95%. São Paulo e Rio de Janeiro ficaram com os restantes 5% que escapam às citadas delimitações ideológicas.

Em linguagem corrente, aos dois principais centros culturais do país, onde se concentra o maior número de produtores e artistas, sobrou apenas 5% da verba que não se enquadra no corte de raça, gênero e localização geográfica. Como Mao Tsé-Tung, não se deseja premiar a qualidade dos projetos, tampouco a experiência do realizador. Valem os novos conceitos dados como divinos pela camarilha petista, inspirados, como se sabe, pela primeira-dama Janja da Silva.

E aqui se discute porque é vendida como política pública cultural feita com o dinheiro de impostos. O edital da Petrobras recai na — e repete a — mesma armadilha da Lei Paulo Gustavo, pensada e armada em resposta aos danos da pandemia ao setor artístico. No caso, 70% da verba era destinada ao audiovisual. Ok. Mas logo começou o populismo — o dinheiro foi enviado a todos os estados e a todos os municípios. E 20% deveriam caber a diretores negros e outros 10% a realizadores indígenas. Lindo. Não se pedia currículo, apenas os quesitos de raça e município. Não é necessário lembrar a impossibilidade de cumprimento da diretriz, dado que não são todas as cidades — Caicó? São Félix? — que abrigam profissionais de cinema ou cineastas indígenas e negros. O dinheiro apenas se encaminha para outras atividades decididas pelo prefeito. O Brasil está assolado pelo miasma que orienta as emendas parlamentares, uma política pública provinciana de desperdício de dinheiro dos impostos.

O espirito do “janjismo” se confunde com o dirigismo cultural praticado por Stálin em suas tristes décadas. Não é política pública de incentivo à cultura, mas sim direção de como se deve comportar a produção artística. O dirigente soviético veria no conceito de cotas um aprimoramento de sua ação, até mais sofisticado. Stálin se via obrigado a recorrer a seus burocratas e, quando não atendido ou desafiado, lançava mão do exílio em trabalhos forçados na Sibéria ou de simples assassinatos.

Lembro-me do que aconteceu a Dmitri Shostakovich. O compositor russo, nada ufanista e pouco otimista, era orientado pelos stalinistas a compor a partir dos ritmos folclóricos russos (!), enquanto artisticamente tinha caráter internacionalista. Na quadra petista, esquece-se o currículo ou a qualidade cultural para se curvar a um critério fashion de raça e gênero. Puro folclore.

O dirigismo não entende a cultura como um processo civilizacional e tecnológico. Age mais por voluntarismo e populismo político — plantem repolhos! Vira as costas ao que está conquistado pela economia criativa. Enfim, destrói a competência. Por décadas, os realizadores construíram uma cadeia orgânica de produção, com profissionais, escolas e equipamentos concentrados em alguns centros. Não se tem verba para um Masp em todas as cidades.

Numa metáfora ao gosto dos sindicalistas petistas, é desaconselhável produzir automóveis em Ananindeua (PA). Soa mais prático fazer uso dos companheiros metalúrgicos da região do ABC Paulista. Por quê? Ali há experiência e uma cadeia profissional de produção, onde se desenvolveu uma cultura automobilística. Se há uma indústria em operação, por que desmontá-la? Pelo poder, Stálin desconstruiu a cultura russa. Janjismo é uma espécie de volta às raízes. Será outra ruína.

 

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