O Globo
Superior Tribunal Militar anistiou assassinos
de Evaldo Rosa, músico que estava com a família a caminho de um chá de bebê
Os episódios de impunidade em crimes bárbaros
se avolumam numa intensidade que, além de desmoralizar o sistema de Justiça,
mina a confiança na democracia. Erra quem não enxerga a correlação. Num par de
anos, a proporção de brasileiros que creem no regime como melhor forma de
governo caiu 10 pontos percentuais, de 79% para 69%, informou o Datafolha após
pesquisa com 2.002 eleitores nos últimos dias 12 e 13 de dezembro.
O sistema eleitoral foi testado, e a transição de poder estressada até o golpe tentado em 8 de janeiro de 2023, ainda sob investigação. Mas a confiança na democracia diminuiu. Noves fora o desapontamento de viúvos do ex-presidente que sonhava permanecer no poder mesmo derrotado nas urnas, há motivos para o desencanto. Todo dia sabemos de um. O mais recente veio da anistia, pelo Superior Tribunal Militar, aos assassinos de Evaldo Rosa em 2019. O músico estava com a família a caminho de um chá de bebê, na Zona Norte do Rio, quando seu carro foi alvejado por tiros de fuzil de homens do Exército. Na cena, morreu também o catador de material reciclável Luciano Macedo, que tentou socorrer a vítima.
Na primeira instância, os oito militares
foram condenados a até 31 anos de prisão em regime fechado. Na Justiça Militar,
as penas foram reduzidas a um décimo. Os acusados cumprirão, no máximo, três
anos e dez meses em regime aberto, somente pelo crime culposo (sem intenção de
matar) contra Luciano. Pelo fuzilamento de Evaldo, foram absolvidos.
Luciana Nogueira, viúva de Evaldo, foi a
Brasília para audiência de recurso. Viajou com o filho, Davi Bruno, que, aos 7
anos de idade, viu o pai morrer na ação dos militares. Ela não escondeu a
desapontamento com a decisão do STM.
Cogita até não recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF),
última instância possível:
— Uma decisão horrível, lamentável, triste.
Muito complicado. Mas era um pouco de esperar, porque, no país em que a gente
vive, a gente sabe que não existe justiça, principalmente para pobre e preto.
O desabafo de Luciana, mais uma mulher feita
ativista pelo luto, ecoa em outras vítimas da brutalidade que não encontraram
alento em tribunais. Os policiais que assassinaram o menino João Pedro, aos 14
anos, numa operação mal explicada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em
2020, acabaram sumariamente absolvidos na primeira instância. Nem a julgamento
foram.
O tribunal do júri, que representa a
sociedade, condenou por homicídio culposo o policial militar que matou com um
tiro nas costas o jovem Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, na Favela de
Manguinhos, dez anos atrás. Na semana passada, o TJ-RJ acolheu o pedido de um
novo julgamento. Noutro caso emblemático, o júri absolveu os sete agentes
acusados de participação no assassinato do dançarino Douglas Rafael da Silva
Pereira, o DG, também em 2014, na comunidade Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul
carioca.
Cinco anos depois do crime, o PM acusado pelo
assassinato da menina Ágatha Félix, aos 8 anos, numa comunidade do Complexo do
Alemão, também foi absolvido no mês passado. Os jurados consideraram que o
policial não teve intenção de matar a menina, alvejada por um tiro de fuzil nas
costas, ao lado da mãe, dentro de uma Kombi, na comunidade onde moravam.
Situações recorrentes de abusos — vide a
epidemia de violência policial em São Paulo e na Bahia, para ficar em dois
estados — e certeza de impunidade para os culpados consolidam a percepção de
anistia recorrente para uns e de dor permanente para outros. Não faltam
iniciativas nem alertas sobre quanto a injustiça deteriora a confiança nas
instituições. Por conseguinte, na democracia.
Ainda ontem, o TJ-RJ fez um aceno ao respeito
às tradições religiosas e culturais no país. O machado de Xangô, símbolo de
verdade, justiça e equilíbrio, foi entronizado no hall dos auditórios da sede
da Justiça fluminense. É a primeira vez que um objeto sagrado para cultos de
matriz africana ganha espaço permanente de exibição. O Oxê, machado de dois
gumes do orixá da justiça, foi presente de Arethuza Doria, uma filha de Oyá.
A iniciativa foi negociada com o presidente
do TJ-RJ, desembargador Ricardo Rodrigues, pela Comissão da Verdade da
Escravidão Negra do Rio. Realizou-se quase simultaneamente ao julgamento do STF
sobre laicidade. Em fins de novembro, o Supremo decidiu que a presença de peças
sagradas em prédios e órgãos públicos não fere a laicidade do Estado nem a
liberdade de crença, princípios constitucionais. A tese de repercussão geral
saiu de ação do Ministério Público Federal contra a presença de símbolos
religiosos no TRF-SP. O STF entendeu que há valorização de aspectos culturais
da sociedade brasileira, não imposição de fé. Assim, cruzes, imagens e peças
sagradas de todos os credos estão permitidos. Oxalá a fé inspire a justiça.
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