terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Quem pagará a conta do ajuste? - Jorge J. Okubaro

O Estado de S. Paulo

Querer que um governo liderado pelo PT rompa com seus compromissos históricos é querer mudar o governo. Ainda que sem golpe explícito

Cortar R$ 1 trilhão em gastos do governo federal em cinco anos? Ou R$ 3 trilhões em dez anos? O anúncio de um programa com esse feitio provocaria celebrações com champanhe em certas áreas de São Paulo cujos frequentadores veem o governo de Luiz Inácio Lula da Silva não como responsável por enfrentar os imensos desafios econômicos e sociais que retardam o progresso, mas como o maior problema do País.

Se ainda não podem comemorar, pois tal programa não existe, os que convivem nessa região especial da cidade podem alimentar alguma esperança. Um grupo de deputados começou, há dias, a coletar assinaturas para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com essa meta. São necessárias assinaturas de 171 deputados para que a PEC seja protocolada, primeiro ato formal para o início de sua tramitação. Ainda não há garantia de que esse número seja alcançado. Mas o anúncio da proposta reforçou a preocupação com o ajuste das contas públicas. Por seu conteúdo, a PEC mostra também como se fazem as escolhas políticas que apontam quem vai pagar a conta.

A iniciativa dos deputados – Kim Kataguiri (União-SP), Julio Lopes (PP-RJ) e Pedro Paulo (PSD-RJ) – contém basicamente oito medidas. Parte delas coincide, pelo menos nas intenções, com as que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou na semana passada e causou tanta revolta em certos meios financeiros, o que empurrou a cotação do dólar para seus recordes históricos.

São propostas destinadas, por exemplo, ao combate dos supersalários pagos no serviço público, à revisão dos benefícios vinculados à inatividade dos militares e à definição de um programa minimamente veraz de equilíbrio financeiro estrutural, sem necessidade de remendos a cada exercício fiscal. Ainda mais objetivamente do que as medidas anunciadas pelo governo para conter a evolução dos custos das emendas parlamentares, a PEC propõe limitar o valor total dessas emendas a um porcentual máximo das despesas primárias discricionárias do Poder Executivo.

“É preciso ressaltar que a presente proposta, ao buscar disciplinar o crescimento de despesas com maior responsabilidade fiscal, guarda uma preocupação intrínseca com a estabilidade macroeconômica e o desenvolvimento socioeconômico do País”, afirmaram os deputados na justificativa da proposta.

Nada a discordar até aqui. Mas o grande ajuste, em valores, não resultará dessas medidas. A pretendida economia de gastos virá mais fortemente de outras áreas, sobretudo as voltadas para programas sociais. Para quem se incomoda com as imensas desigualdades do País, a lista preocupa.

A PEC revoga o dispositivo que obriga a União a aplicar, no mínimo, 15% da receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde e educação. Segundo o Tesouro, essas áreas podem perder R$ 500 bilhões em nove anos.

A complementação mínima da União para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), atualmente em 23% do fundo, deixa de ser constitucional e passa a ser definida por lei complementar.

A PEC também estabelece que o salário mínimo será corrigido somente pela inflação entre 2026 e 2031. Após esse período, o presidente da República poderá enviar um projeto para revisar os mecanismos de correção, seguindo as regras do arcabouço fiscal. Além disso, o texto desvincula do salário mínimo os benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), os Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e o abono salarial. Atualmente, a Constituição garante que nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.

A redução de gastos sociais como parte do ajuste fiscal é exigida por parte dos que, nos últimos dias, se dedicaram a bombardear a proposta anunciada pelo ministro Fernando Haddad. Um analista com algum conhecimento de história e algum senso de realismo político sabe que, se o presidente se render a demandas como essas, terá destruído sua história pessoal e a do seu partido. Ainda que tenha percorrido caminhos estranhos ao longo de sua história, o PT, desde suas origens, é um partido voltado para os problemas sociais. Um governo de que o PT faça parte não aceitaria cortar programas sociais do modo pretendido na PEC. Poderia propor com mais clareza a taxação progressiva sobre a renda: quem ganha mais deve pagar proporcionalmente mais. Em vez disso, propõe isentar da tributação contribuintes que, mesmo não ganhando muito, são considerados ricos num país como Brasil.

Mas exigir do governo Lula da Silva um ajuste com essa conformação é querer impor aos que ganharam a eleição de 2022 parte do programa dos que foram derrotados nas urnas. Querer que um governo liderado pelo PT rompa com todos os seus compromissos históricos é querer mudar o governo. Ainda que sem golpe explícito.

 

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