domingo, 22 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Reforma tributária ainda é uma obra em construção

O Globo

Lula deve sancionar regulamentação sem vetos, pois o próprio texto traz mecanismos de ajuste com o tempo

A regulamentação da reforma tributária no Congresso foi um marco na modernização de um sistema de impostos disfuncional, caótico e arcaico. Mas não esgota o assunto. Trata-se, na verdade, de uma obra em construção. O secretário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, tem razão ao dizer que houve “um avanço muito grande” em comparação com o que existe no país e que, apesar das inúmeras imperfeições nas regras aprovadas pelos parlamentares, elas são um preço necessário a pagar pela evolução.

Para começar, será uma revolução o contribuinte saber com exatidão quanto imposto paga, não precisar recorrer à esfera administrativa ou à judicial contra cobranças indevidas e se preocupar apenas com dois impostos sobre valor adicionado (IVA), sistema adotado há décadas nos países mais desenvolvidos. Apenas no ICMS, imposto estadual, há 27 regulamentações diferentes, para não falar na barafunda de normas e regras municipais. As empresas economizarão tempo e dinheiro no relacionamento com o Fisco.

Turbulência e esperança - Luiz Sérgio Henriques

O Estado de S. Paulo

Vivemos entre a incompletude radical das soluções locais e a precariedade dos instrumentos multilaterais criados a duras penas

Frases e reflexões de Antonio Gramsci, um clássico moderno, costumam correr livremente na barafunda das redes sociais, e não por acaso. Uma delas é particularmente expressiva e trata de transições turbulentas, como a que o sardo viveu há cem anos e como a que agora vivemos nós. É quase certo que já tenhamos lido aqui e ali sua definição de “interregno” – um tempo estranho e incerto, nebuloso até, em que o velho morreu e o novo ainda não nasceu. Um tempo por isso mesmo povoado de monstros e anomalias políticas. Palavras de fogo, certamente, cuja utilidade presente não é preciso ressaltar.

Naturalmente, para ele a novidade histórica, apesar da sua reconhecida fineza analítica, teria o perfil delineado pelos acontecimentos que se desdobravam desde 1917, ou seja, a ruptura com o capitalismo. Seu paradigma era o de algum tipo de revolução, ainda que severamente danificado pelas dificuldades próprias do Ocidente político e pela emergência de uma enorme reação conservadora – o fascismo, do qual, como é bem sabido, se tornaria prisioneiro.

O dólar, entre o populismo e o patrimonialismo – Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

Assistimos um reality show de populismo e patrimonialismo, cujo resultado foi um grande estresse cambial, com a disparada do dólar, que continua acima dos R$ 6

O populismo sustenta-se no tripé liderança carismática, promessas além do exequível e críticas às elites. Não se pode dizer, porém, que o populismo seja o principal responsável pelas nossas desigualdades sociais e que, necessariamente, derive para o autoritarismo. Esse tipo de narrativa, ao contrário, justificou retrocessos políticos como o regime militar implantado a partir da destituição de João Goulart, em 1964. 

Nosso populismo surge com Getúlio Vargas, a partir da Revolução de 1930, como resposta à república oligárquica. Sua retórica voltada ao trabalhador foi amparada por direitos sociais que incluíram os trabalhadores assalariados na vida política nacional, como a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e o reconhecimento dos sindicatos. Ao mesmo tempo, o golpe de 1937, que implantou o Estado Novo, consolidou a tese de que o populismo deriva para o autoritarismo, o que viria a ser desmentido pelo próprio Vargas, após voltar ao poder pelo voto, na crise que o levou ao suicídio, em 1954.

As vitórias na semana difícil - Míriam Leitão

O Globo

Foram dias duros, mas o governo encerra a semana contabilizando vitórias como a aprovação do pacote fiscal e da Reforma Tributária

A semana passada foi especialmente tumultuada, mas terminou com balanço positivo. Foi aprovada a última parte da regulamentação da Reforma Tributária, dos impostos sobre consumo, uma vitória em uma luta de mais de três décadas. Foi aprovado o pacote fiscal. O dólar disparou, bateu em nível recorde, mas recuou na tarde da quinta e na sexta-feira. Houve uma transição harmônica no Banco Central e o presidente Lula deu uma chancela firme à autonomia do BC.

Ninguém sai de guerras sem baixas e feridos. O pacote perdeu parte da consistência, o Congresso se rendeu ao lobby da minoria do funcionalismo que ganha acima do teto. A Reforma Tributária passou a abrigar concessões a vários grupos de interesse. O mais danoso deles, o das armas. O dólar permaneceu alto e isso afeta a economia real, principalmente a inflação.

O governo com a palavra - Merval Pereira

O Globo

Com a autonomia garantida por lei aprovada no Congresso, de nada adianta Lula apertar paternalmente as mãos de Galipolo e garantir-lhe liberdade de ação. Não é uma concessão de Lula essa liberdade, mas uma conquista do Banco Central brasileiro que garante sua independência

O novo presidente do Banco Central, Gabriel Galipolo, está cercado pela tentativa do PT de fazê-lo parte integrante do governo, enquanto afirmam que ele terá garantida sua autonomia. Só essa garantia, partida de ninguém menos do que o presidente Lula, já mostra como veem o papel do BC na economia brasileira. Com a autonomia garantida por lei aprovada no Congresso, de nada adianta Lula apertar paternalmente as mãos de Galipolo e garantir-lhe liberdade de ação. Não é uma concessão de Lula essa liberdade, mas uma conquista do Banco Central brasileiro que garante sua independência.

Justamente para que o governo do momento não tenha condições de tentar manipular a taxa de juros. Os recentes aumentos da taxa foram decididos por unanimidade pela diretoria do Banco Central, que tem diretores já nomeados por Lula, inclusive Galipolo, que trabalhava com Fernando Haddad antes de ser nomeado. Esses fatos indicam que forçar uma queda de juros sem que existam condições técnicas para tal não terá respaldo nessa diretoria.

O reinado do Arthur - Bernardo Mello Franco

O Globo

Às vésperas de deixar a cadeira, chefão da Câmara arrancou uma nova estatal em Alagoas

Está perto do fim o reinado de Arthur Lira. O chefão da Câmara passou quatro anos na cadeira. Sua gestão será lembrada pela aliança com o bolsonarismo, pela truculência e pelo sequestro do Orçamento.

Lira mandou e desmandou como nenhum antecessor. Para apitar sozinho, esvaziou as comissões, triturou o regimento e sufocou as vozes divergentes. À frente de uma Casa de debates, não hesitou em cortar o microfone e ameaçar deputados que ousaram questioná-lo

O alagoano chegou ao cargo em 2021, com apoio do então presidente Jair Bolsonaro. Em pouco tempo, tornou-se uma espécie de primeiro-ministro. Enquanto o capitão se dedicava a lives e motociatas, ele tomou conta da articulação política e da pauta econômica.

A mágica chegou ao fim – Elio Gaspari

O Globo

A alta do dólar e a erosão da popularidade do governo fecharam a primeira metade de Lula 3.0. Prenuncia-se uma segunda metade cinzenta, na qual acumulam-se dificuldades do calendário, como o ano eleitoral, e imprevistos, como a incerteza em relação à saúde do presidente. Uma coisa era certa: a mágica verbal com a economia teria um limite e se esgotou.

Desde sua posse, Lula alternou malabares. Nos dias pares, culpava Roberto Campos Neto por uma economia que patinava. Nos ímpares, buscava, sem sucesso, um protagonismo internacional. Gastou dois anos tentando trocar êxitos, como a reforma tributária, enquanto escondia que seu governo não cortava despesas. Portanto, não cumpriria a meta do equilíbrio fiscal prometido durante a campanha eleitoral.

O golpe final na mágica veio do futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, esvaziando a teoria segundo a qual o real desvalorizou-se por causa de um ataque especulativo. Nas suas palavras:

Uma mulher – Dorrit Harazim

O Globo

Gisèle Pelicot abriu mão do anonimato, dos óculos escuros, do silêncio e do horror para se libertar em público e reconquistar a identidade

Em setembro último, quando emergiram os primeiros detalhes do julgamento de monsieur Dominique Pelicot e sua confraria de estupradores sob demanda, ficamos aparvalhados. Onde encaixar a depravação e sordidez do nauseabundo crime coletivo cometido por pacatos cidadãos num vilarejo do sul da França? Teria sido conveniente e tranquilizador se os réus fossem aberrações sociais, praticantes de atos de ignomínia humana. Não foi o caso. Eram todos bípedes comuns, tocando vidas modorrentas, banais. É isso que assusta.

Na semana passada, Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por orquestrar o estupro coletivo de sua mulher, Gisèle, com participção de mais de 70 desconhecidos aliciados na região. Ao longo de quase uma década (2011 a 2020), esses corréus participaram de 92 sessões de abuso da vítima previamente sedada e “preparada” na cama pelo marido. O próprio Pelicot admitiu dopar e estuprar a esposa duas ou três vezes por semana, totalizando cerca de 1.400 violências. As altas doses de sedação à revelia a que Gisèle foi submetida fizeram com que tivesse lapsos de memória, desorientação e dores ginecológicas atrozes. Dominique Pelicot, tido como bom marido, a acompanhava nas visitas a especialistas. Sua motivação para também filmar e fotografar duas noras e uma filha enquanto dormiam?

Dois anos bons, dois perigosos - Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo

Se Haddad conseguir muito menos do que pretende, e a gastança prevalecer, a segunda metade do atual governo poderá ser desastrosa

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa dois anos de mandato com desemprego baixo e economia ainda vigorosa, mas com inflação longe da meta, insegurança nas contas públicas, juros altos, mercado financeiro inquieto e perspectiva de crédito caro nos próximos anos. Em Brasília, nem a aproximação do Natal abrandou as preocupações com a economia. O Congresso avançou no exame de propostas do Executivo para arrumação das finanças federais. Retardou o recesso, cooperou com o ministro da Fazenda e contribuiu para a criação, neste fim de ano, de um ambiente incomum de entendimento político. Passadas as festas, no entanto, será preciso cuidar dos desajustes apontados nas projeções do mercado e do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC).

A busca pela ignorância - Hélio Schwartsman

Folha de S. Paulo

Novo livro de Mark Lilla destrincha os mecanismos pelos quais pessoas optam ativamente por não saber

Aristóteles escreveu que o ser humano busca o conhecimento. Acho até que dá para avançar um pouco mais e afirmar que quase tudo de bom que a civilização nos proporciona se deve ao fato de termos esse impulso natural pelo conhecimento e sermos capazes de acumulá-lo coletivamente e transmiti-lo às próximas gerações.

Se cada pessoa que chega ao mundo tivesse de reinventar a roda e recriar a escrita por conta própria, a história de nossa espécie seria muito diferente. Talvez nem houvesse História.

O que escorre sob a ponte da civilidade - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Da Revolução Francesa à violência da PM em SP, há presença do horror em estado puro

Para Antoine de Rivarol, polemista do século 18, a Revolução Francesa terminou quando acabaram as execuções em praça pública, e o povo já não mais cantava "ça ira, ça ira /les aristocrates on les pendra" ("vai dar certo, vai dar certo / vamos enforcar os aristocratas"). Ou seja, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade seriam coisa de intelectuais iluministas, enquanto à massa interessava o espetáculo da vingança pela guilhotina. Essa impulsão parece intemporal, próxima ao que os alemães conhecem como "Schadenfreude", o prazer de infligir sofrimento a outros.

Lula depende da classe média - Bruno Boghossian

Folha de S. Paulo

Popularidade do presidente caiu em faixas intermediárias de renda no segundo ano de governo

Nas primeiras reuniões do mandato, Lula conversou com ministros sobre um tema que havia se tornado sua obsessão: a classe média. O presidente dizia que era preciso elaborar propostas para um segmento que parecia negligenciado pelos petistas. Antes de completar 100 dias de governo, ele declarou que pretendia resgatar "o poder aquisitivo da classe média brasileira".

O plano tinha como pressuposto o resultado rápido que o governo esperava colher na população de baixa renda. Pela projeção, a retomada de políticas direcionadas aos mais pobres daria à popularidade de Lula as fundações para avançar para a classe média, um segmento que tem cultivado o antipetismo nos últimos anos.

Lula ri amarelo no fim do ano de erros horríveis - Vinicius Torres Freire

Folha de S. Paulo

Disfarçando o vexame, governo admite decisões toscas que podem custar a eleição em 2026

No último dia político do ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ministros tentaram passar uma mão de tinta na parede rachada do crédito do governo. Lula foi o maior responsável pelo desastre financeiro de dezembro, que deixará sequelas na economia e no seu cacife político, fecho de um ano de erros horríveis.

Feito o estrago, sugeriu-se a Lula que elogiasse a autonomia do Banco Central e Gabriel Galípolo; que demonstrasse consciência da "necessidade de novas medidas [fiscais]". Fernando Haddad voltou a dizer que medidas virão, talvez em março, e que o pacote seria apenas parte de um processo de ajuste politicamente difícil, o que é verdade, mas não justifica o disparate de novembro.
Foi um reconhecimento do erro e das desgraças recentes, anunciado por Lula com soberba disfarçada por sorrisos amarelos, sabe-se lá se com consequências práticas.

Entre Covid e Trump - Celso Rocha de Barros

Folha de S. Paulo

Furdunço de Satã ajuda a entender importância para governo em apoio a esforço fiscal de Haddad

O debate econômico atual talvez fique menos barulhento se o situarmos dentro do contexto mundial repleto de incertezas em que vivemos.

Na fase atual pós-Covid, o mundo todo sofre com níveis altos de endividamento público, inflação e juros, tudo ao mesmo tempo.

Ainda há controvérsias sobre o que gerou esse cenário.

Um dos suspeitos é o gasto governamental durante a pandemia. Em sua última live como presidente do Banco Central na última sexta-feira (19), Roberto Campos Neto lembrou que cerca de 20% do PIB mundial foi gasto para combater a Covid-19. Esse dinheiro pode ter aquecido a economia, aumentado a demanda e ajudado a gerar inflação e dívida.

Resposta a Celso sobre política fiscal - Samuel Pessôa

Folha de S. Paulo

Despesa crescer mais que a economia torna insustentável a trajetória do gasto

Meu amigo Celso Rocha de Barros perguntou-me o que fazer para arrumar a política fiscal. Segue, com alguns ajustes, minha resposta. Desde já vai meu agradecimento a Celso por me dar a oportunidade de organizar as ideias.

Diagnóstico: o problema é o mesmo do período anterior, que levou à nossa grande crise de 2014 até 2016: as regras existentes para a evolução do gasto obrigatório do governo central demandam que a despesa, sistemática e permanentemente, cresça a uma taxa superior à taxa de expansão da economia. A trajetória do gasto é insustentável.