quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

A ameaça de Trump à democracia dos EUA - Martin Wolf

Valor Econômico

Devemos esperar que o povo americano não abandone levianamente as tradições iluministas de seu país

A democracia dos Estados Unidos sobreviverá à segunda presidência de Donald Trump? Esta não é uma questão teórica. É evidente que Trump está seguindo um roteiro conhecido para transformar uma democracia liberal em uma não liberal. Este último, é um eufemismo para uma ditadura - um regime em que as decisões se baseiam na vontade de uma pessoa, amplamente livre de prestação de contas a qualquer outra.

Em “The Spirit of Democracy”, Larry Diamond, da Universidade Stanford, afirma que uma democracia liberal consiste em eleições livres e justas, proteção dos direitos civis e humanos de todos os cidadãos igualmente, e um Estado de Direito que une todos os cidadãos igualmente. Essas, então, são as “regras do jogo”. Mas a eficácia dessas regras depende de restrições sobre aqueles que controlam temporariamente o Estado. As restrições mais importantes são o Judiciário, os partidos políticos, as burocracias e a imprensa. A questão é se elas se manterão, primeiro enquanto Trump for presidente e depois no longo prazo.

Em uma discussão recente na “The New Republic”, Steven Levistky e Daniel Ziblatt de Harvard, autores de “Como as democracias morrem”, observam que o processo clássico de “abdicação coletiva” ou “suicídio institucional” diante de uma tomada autoritária já avançou consideravelmente. Trump tomou conta do Partido Republicano. Seu controle sobre a base eleitoral do partido levou este a endossar a “grande mentira” de que ele venceu a eleição de 2020. A Suprema Corte decidiu que um presidente é imune a processos criminais por seus “atos oficiais”, uma doutrina que o jurista britânico Lord Jonathan Sumption insiste, coloca o presidente acima da lei, tornando-o, na prática, mais parecido com um rei do que com um cidadão. Além disso, já vemos indivíduos poderosos como Mark Zuckerberg se curvando diante de seu novo governante.

Do que eles têm medo? Que o presidente use a máquina do Estado como arma contra eles. É isso que ele e as pessoas que o cercam pretendem fazer. Suas nomeações sugerem isso. Assim como também os planos de substituir burocratas por pessoas leais a Trump, conforme esboçado no “Projeto 2025” da Heritage Foundation. Tal lealdade seria uma arma poderosa da autocracia. Ela tornaria a burocracia obediente ao presidente, em vez das leis que eles são obrigados a implementar.

Timothy Snyder, de Yale, um especialista em totalitarismo europeu do século XX, descreve as nomeações para os departamentos de Saúde, Justiça e Defesa, bem como para chefiar os serviços de inteligência, como um “golpe de decapitação”. Isso ocorre, em parte, devido à provável incompetência e malemolência dos indicados, que causariam graves prejuízos ao funcionamento do Estado. Além disso, a ameaça de politizar o governo federal, incluindo o sistema judiciário, contra o “inimigo interno” causaria danos severos à democracia.

Uma questão crucial é até onde as instituições, em especial as que governam as eleições, sobreviverão. Trump e seus capangas temerão a retribuição pela “retribuição” que buscam infligir. Isso dá a eles um incentivo enorme para fraudar as regras do jogo, com a ajuda do Judiciário

Todos esses comportamentos, acrescentam Levitzky e Ziblatt, são características clássicas de aspirantes a autocratas. Eles se enquadram nas categorias gerais de “capturar os árbitros” e “neutralizar os jogadores”. No primeiro caso, estariam incluídas novas mudanças no judiciário em todos os níveis. No segundo, ataques de diversas naturezas contra órgãos independentes da imprensa, jornalistas, instituições acadêmicas e editoras.

Além disso, é importante lembrar do projeto central de deportar imigrantes em situação irregular. Esse esforço provavelmente uniria muitos elementos da nova abordagem em um só. Deportar muitos milhões de pessoas exigiria uma operação militar enorme, intrusões significativas nas jurisdições estaduais e locais, a criação de grandes campos de detenção, a repressão a protestos e, não menos importante, encontrar países onde despejar as pessoas deportadas.

Será que tudo isso pode realmente acontecer? Talvez. Mas a combinação de tal nível de perturbação com o que também provavelmente será uma turbulência econômica substancial pode virar a opinião pública contra Trump, que tem uma margem de votos de apenas 1,5 ponto porcentual e nunca foi muito popular. Embora tenha apoiadores apaixonados, ele também tem opositores igualmente apaixonados.

Além disso, se a Constituição for mantida, ele terá apenas mais este mandato. No geral, sua influência sobre a opinião pública e seu partido tende a enfraquecer a partir de agora. As habilidades de Trump como um demagogo populista são excepcionais, mas é provável que o partido tenha dificuldades para encontrar um substituto suficientemente carismático em 2028. Além disso, sua coligação já demonstra sinais de fragmentação: nacionalistas cristãos e nativistas não são aliados naturais de “plutocratas da tecnologia” como Elon Musk.

É bem possível, então, que qualquer impulso autocrático de Trump acabe ultrapassando os limites e gere uma forte reação contrária, até mesmo entre as pessoas comuns. Afinal, elas ainda não foram diretamente afetadas por isso. Será necessário coragem para que as pessoas se mobilizem. Mas devemos ter esperança de que o povo americano não abandonará facilmente as tradições liberais e iluministas de seu país diante dos ataques dos adversários autoritários e reacionários de hoje.

No entanto, trata-se de um país profundamente dividido, onde pesquisas indicam que muitos americanos já perderam a confiança em sua democracia. Se isso não puder ser corrigido, a própria democracia poderá fracassar.

Uma questão crucial agora é até onde as instituições da democracia liberal, em particular as que governam as eleições, sobreviverão. Muitos dos capangas de Trump, assim como o próprio Trump, temerão a retribuição pela “retribuição” que buscam infligir. Isso dá a eles um incentivo enorme para fraudar as regras eleitorais do jogo, com a ajuda do Judiciário.

Se eles conseguirem subverter as eleições nacionais dos EUA, isso poderá até ser o “fim do jogo”. As consequências globais disso seriam devastadoras. Sem o engajamento ativo de uma América democrática, a saúde da democracia liberal no mundo estaria em grande perigo.

Benjamin Franklin disse a famosa frase que os EUA tinham “uma república, se conseguirem mantê-la”. Poderemos descobrir em breve se isso é realmente possível. (Tradução de Mário Zamarian)

 

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