Valor Econômico
Devemos esperar que o povo americano não
abandone levianamente as tradições iluministas de seu país
A democracia dos Estados Unidos sobreviverá à
segunda presidência de Donald Trump? Esta não é uma questão teórica. É evidente
que Trump está seguindo um roteiro conhecido para transformar uma democracia
liberal em uma não liberal. Este último, é um eufemismo para uma ditadura - um
regime em que as decisões se baseiam na vontade de uma pessoa, amplamente livre
de prestação de contas a qualquer outra.
Em “The Spirit of Democracy”, Larry Diamond, da Universidade Stanford, afirma que uma democracia liberal consiste em eleições livres e justas, proteção dos direitos civis e humanos de todos os cidadãos igualmente, e um Estado de Direito que une todos os cidadãos igualmente. Essas, então, são as “regras do jogo”. Mas a eficácia dessas regras depende de restrições sobre aqueles que controlam temporariamente o Estado. As restrições mais importantes são o Judiciário, os partidos políticos, as burocracias e a imprensa. A questão é se elas se manterão, primeiro enquanto Trump for presidente e depois no longo prazo.
Em uma discussão recente na “The New
Republic”, Steven Levistky e Daniel Ziblatt de Harvard, autores de “Como as
democracias morrem”, observam que o processo clássico de “abdicação coletiva”
ou “suicídio institucional” diante de uma tomada autoritária já avançou
consideravelmente. Trump tomou conta do Partido Republicano. Seu controle sobre
a base eleitoral do partido levou este a endossar a “grande mentira” de que ele
venceu a eleição de 2020. A Suprema Corte decidiu que um presidente é imune a
processos criminais por seus “atos oficiais”, uma doutrina que o jurista
britânico Lord Jonathan Sumption insiste, coloca o presidente acima da lei,
tornando-o, na prática, mais parecido com um rei do que com um cidadão. Além
disso, já vemos indivíduos poderosos como Mark Zuckerberg se curvando diante de
seu novo governante.
Do que eles têm medo? Que o presidente use a
máquina do Estado como arma contra eles. É isso que ele e as pessoas que o
cercam pretendem fazer. Suas nomeações sugerem isso. Assim como também os
planos de substituir burocratas por pessoas leais a Trump, conforme esboçado no
“Projeto 2025” da Heritage Foundation. Tal lealdade seria uma arma poderosa da
autocracia. Ela tornaria a burocracia obediente ao presidente, em vez das leis
que eles são obrigados a implementar.
Timothy Snyder, de Yale, um especialista em
totalitarismo europeu do século XX, descreve as nomeações para os departamentos
de Saúde, Justiça e Defesa, bem como para chefiar os serviços de inteligência,
como um “golpe de decapitação”. Isso ocorre, em parte, devido à provável
incompetência e malemolência dos indicados, que causariam graves prejuízos ao
funcionamento do Estado. Além disso, a ameaça de politizar o governo federal,
incluindo o sistema judiciário, contra o “inimigo interno” causaria danos severos
à democracia.
Uma questão crucial é até onde as
instituições, em especial as que governam as eleições, sobreviverão. Trump e
seus capangas temerão a retribuição pela “retribuição” que buscam infligir.
Isso dá a eles um incentivo enorme para fraudar as regras do jogo, com a ajuda
do Judiciário
Todos esses comportamentos, acrescentam
Levitzky e Ziblatt, são características clássicas de aspirantes a autocratas.
Eles se enquadram nas categorias gerais de “capturar os árbitros” e
“neutralizar os jogadores”. No primeiro caso, estariam incluídas novas mudanças
no judiciário em todos os níveis. No segundo, ataques de diversas naturezas
contra órgãos independentes da imprensa, jornalistas, instituições acadêmicas e
editoras.
Além disso, é importante lembrar do projeto
central de deportar imigrantes em situação irregular. Esse esforço
provavelmente uniria muitos elementos da nova abordagem em um só. Deportar
muitos milhões de pessoas exigiria uma operação militar enorme, intrusões
significativas nas jurisdições estaduais e locais, a criação de grandes campos
de detenção, a repressão a protestos e, não menos importante, encontrar países
onde despejar as pessoas deportadas.
Será que tudo isso pode realmente acontecer?
Talvez. Mas a combinação de tal nível de perturbação com o que também
provavelmente será uma turbulência econômica substancial pode virar a opinião
pública contra Trump, que tem uma margem de votos de apenas 1,5 ponto
porcentual e nunca foi muito popular. Embora tenha apoiadores apaixonados, ele
também tem opositores igualmente apaixonados.
Além disso, se a Constituição for mantida,
ele terá apenas mais este mandato. No geral, sua influência sobre a opinião
pública e seu partido tende a enfraquecer a partir de agora. As habilidades de
Trump como um demagogo populista são excepcionais, mas é provável que o partido
tenha dificuldades para encontrar um substituto suficientemente carismático em
2028. Além disso, sua coligação já demonstra sinais de fragmentação:
nacionalistas cristãos e nativistas não são aliados naturais de “plutocratas da
tecnologia” como Elon Musk.
É bem possível, então, que qualquer impulso
autocrático de Trump acabe ultrapassando os limites e gere uma forte reação
contrária, até mesmo entre as pessoas comuns. Afinal, elas ainda não foram
diretamente afetadas por isso. Será necessário coragem para que as pessoas se
mobilizem. Mas devemos ter esperança de que o povo americano não abandonará
facilmente as tradições liberais e iluministas de seu país diante dos ataques
dos adversários autoritários e reacionários de hoje.
No entanto, trata-se de um país profundamente
dividido, onde pesquisas indicam que muitos americanos já perderam a confiança
em sua democracia. Se isso não puder ser corrigido, a própria democracia poderá
fracassar.
Uma questão crucial agora é até onde as
instituições da democracia liberal, em particular as que governam as eleições,
sobreviverão. Muitos dos capangas de Trump, assim como o próprio Trump, temerão
a retribuição pela “retribuição” que buscam infligir. Isso dá a eles um
incentivo enorme para fraudar as regras eleitorais do jogo, com a ajuda do
Judiciário.
Se eles conseguirem subverter as eleições
nacionais dos EUA, isso poderá até ser o “fim do jogo”. As consequências
globais disso seriam devastadoras. Sem o engajamento ativo de uma América
democrática, a saúde da democracia liberal no mundo estaria em grande perigo.
Benjamin Franklin disse a famosa frase que os
EUA tinham “uma república, se conseguirem mantê-la”. Poderemos descobrir em
breve se isso é realmente possível. (Tradução
de Mário Zamarian)
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