quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Êxito – Roberto DaMatta

O Globo

Em ‘Ainda estou aqui’, agentes da ditadura absurdamente promovem insegurança e desarmonia um lar

Numa aldeia, todo mundo é famoso

(Erving Goffman)

É um desfecho venturoso de um ato ou obra. O êxito assegura a existência da felicidade e produz momento de gratidão pela existência.

— A vida presta — ponderou sabiamente uma exitosa Fernanda Torres.

As lágrimas do êxito vão para o céu e são o avesso dos pranto amargo das injustiças e dos infortúnios que obrigam a engoli-las.

Uma explosão de êxito foi o que vi no agradecimento de Fernanda Torres ao receber o Globo de Ouro de melhor atriz no filme “Ainda estou aqui” — um drama revelador de eventos morais e políticos marcados pela coragem e determinação de Eunice Paiva, uma mulher que teve a vida contada num livro comovente do filho, Marcelo Rubens Paiva, cujo talento como autor eu admiro.

A explosão exprime uma vitória patente e — como diria Nélson Rodrigues — insofismável da cinematografia do Brasil como uma arte fundamental de universalização de fábulas e estórias que constituem o coração e a alma da cultura do país. São essas articulações — com início, meio e fim — da ficção que traduzem para o outro, e para cada um de nós, a sociedade com seus dilemas e singularidades.

A importância de “Ainda estou aqui” reside sobremaneira na serenidade do estilo de Walter Salles, que orquestra num filme o terror dos regimes autocráticos salvacionistas, cruelmente polarizadores — tipo “nós ou eles” — ,como infelizmente conhecemos na ditadura militar, que, por sinal, não foi a primeira ditadura que vivemos. O filme exibe um trecho da tragédia brasileira que se repete como expressão funesta das hipocrisias que são parte do nosso dilema — lei ou privilégios, igualdade ou elitismo. Eis o cerne da nossa perene ambiguidade político-institucional.

Mas, cabe perguntar, por que o filme comove? A resposta me conduz a um livro escrito em 1985, “A casa e a rua”, no qual mostro como o regime social da casa é de intimidade, afeto, comensalidade e confiança. No lar não há leis escritas; mas, na rua, vale a impessoalidade que, em regimes autocráticos e salvacionistas, conduz aos totalitarismos. Vale lembrar que um regime totalitário se caracteriza pelo controle de todas as esferas da vida social. 

No caso, assistimos a uma brutal intromissão no mundo da casa dos Paiva por anônimos agentes da ditadura, que chegam da rua e, sem explicações plausíveis, absurdamente promovem insegurança e desarmonia num lar tangido pelo afeto e pela alegria.

O autoritarismo das ditaduras se vale do silêncio — silêncio que é expressão da autoridade absoluta. Foi assim que o pai e marido — o chefe da família — foi raptado numa demonstração de arrogante arbítrio; que, logo em seguida, chega à prisão da dona de casa e da filha. Detenções que reiteram um controle absoluto por precisamente violentador do universo da casa e da família.

No filme, a passagem da invasão da casa pelo arbítrio vai das cenas ensolaradas ao sombrio angustiante da prisão, para terminar numa grata apoteose familiar com Dona Eunice Paiva (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro irmanadas no mesmo papel) — num encontro que reafirma o triunfo da casa e da família sobre uma brutal ditadura militar vinda dos espaços sombrios do mundo da rua.

Vale notar um simbolismo final: a presença da heroína desmemoriada. A memória como uma dimensão crítica da condição humana é um tema do livro no qual o filme foi baseado e, naturalmente, da nossa vida pública feita de memórias esquecidas, distorcidas ou anistiadas. Uma delas, talvez a mais cruel e significativa, é a da escravidão negra como um sistema cultural. Vai sem dizer que “Ainda estou aqui” reafirma com força esse viés autoritário, irmão do esquecimento que jaz no nosso sistema de poder.

P.S.: É preciso dizer a Lula III que democracia não tem amante. Ela é difícil até onde foi consolidada — como explicar Trump e puritanismo? Ademais, ela exige uma fidelidade que Lula da Silva mostrou não ter.

 

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