segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Comédia ideológica brasileira – Miguel de Almeida

O Globo

Depois de ler “Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas”, eu chorei. Ali se enxerga um país esfumaçado nas próprias pernas. É aquilo que perdemos. O denso livro de Fabio Mascaro Querido reconstitui o percurso de personagens seminais do pensamento brasileiro, digamos, uma das gerações mais brilhantes surgidas no Brasil e, ao mesmo tempo, incapaz de dominar seu brilhantismo egoísta e vaidoso. Ah, a soberba.

Para contar a boa história, Querido estabelece o “Seminário d’O Capital”, em 1958, como um marco histórico. A partir de iniciativa do filósofo José Arthur Giannotti, se reúnem nomes como Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Paul Singer, Roberto Schwarz, Michael Löwy e Francisco Weffort, entre outros, para estudar a obra de Karl Marx. O que propicia o encontro quinzenal nas tardes de sábado é o ambiente intelectual instado pela Universidade de São Paulo e sua Faculdade de Filosofia na mítica Rua Maria Antônia.

A USP surge em 1934 como reação das elites paulistas derrotadas na Revolução Constitucionalista de 1932 pelo governo federal de Getúlio Vargas e seu projeto de desenvolvimento. O ditador gaúcho acredita na indução estatista como motor para o crescimento econômico. Os liberais de São Paulo defendem a iniciativa privada como ator principal na modernização. O confronto entre arcaico e moderno vinha já desde o Império, quando a sociedade se dividira entre a manutenção da escravidão como mão de obra e a industrialização dos meios de produção. Durante o governo de Dom Pedro II, um tipo não muito afeito à livre circulação de dinheiro, alguns parlamentares se horrorizam quando o Banco do Brasil, sob gestão do barão de Mauá, começou a emprestar a juros considerados baixos. Aquilo provocaria um mau costume entre a população…

Antes de tudo, os intelectuais estudiosos de Karl Marx buscavam entender o onipresente atraso brasileiro, os motivos capazes de explicar a incapacidade de modernização. Por que um país bonito por natureza se mostrava contundente em sua afeição pelo arcaico, enquanto o restante do mundo ocidental conseguia aproveitar as chances para criar riqueza e, em alguns casos, diminuir a desigualdade social? Apesar de o modelo econômico getulista ter alcançado vários êxitos, baseava-se numa estrutura econômica limitada, populista e autoritária.

Entre os participantes dos seminários, havia divergências políticas e, é óbvio, de métodos para enfrentar a realidade. Florestan Fernandes baseava suas análises a partir da sociologia — a cultura, os hábitos e até o modo de ser do brasileiro poderiam explicar o comportamento errático diante das premissas colocadas pelo desenvolvimento. Outros, como FH e mesmo Giannotti, todos sob a ótica marxista, buscavam respostas na estrutura econômica, no duelo entre o rural e o urbano, o arcaico da produção e o pensamento industrial. Schwarz talvez resuma as contradições quando estuda Machado de Assis e percebe a esquizofrenia entre liberalismo e escravismo. Até a picardia machadiana é vista como elemento reativo, ou arma, para enfrentar as incoerências da sociedade brasileira.

Vale lembrar que os integrantes dos seminários, ocorridos em duas edições, se colocam contra os métodos e análises praticados pelo Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Veem como ultrapassados seus militantes e suas estratégias. Não consideram acertado sequer quando elegem parte da burguesia nacional (sem o capital estrangeiro, por favor) como aliada. Naquele momento, os comunistas acreditam que os efeitos da industrialização são necessários para eliminar a desigualdade social. Como sabemos, a coisa deu ruim, e o Brasil continua desigual.

O golpe militar de 1964 acaba com a festa da esquerda nacionalista. E compromete a esquerda paulista acadêmica — vários dos intelectuais, como FH, Weffort, Singer, entre outros, são obrigados a fugir do país. A ruptura é um choque não apenas pela chegada da ditadura, com a prisão de centenas de opositores, mas pelo retorno de uma visão nacional-desenvolvimentista de cepa militar na economia. Isso já é história.

Pode-se dizer que, dos seminários e das visões divergentes de seus integrantes, resultaram os dois principais partidos da redemocratização. O PT, a partir de 1980, terá nomes como Florestan, Weffort e Schwarz entre seus fundadores. E o PSDB, surgido em 1988 de uma costela do PMDB, é obra de intelectuais como FH e Giannotti.

O PSDB, já morto. E o PT, decadente. Foi a soberba, baby.

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