O Globo
Depois de ler “Lugar periférico, ideias
modernas: aos intelectuais paulistas as batatas”, eu chorei. Ali se enxerga um
país esfumaçado nas próprias pernas. É aquilo que perdemos. O denso livro de
Fabio Mascaro Querido reconstitui o percurso de personagens seminais do
pensamento brasileiro, digamos, uma das gerações mais brilhantes surgidas no
Brasil e, ao mesmo tempo, incapaz de dominar seu brilhantismo egoísta e
vaidoso. Ah, a soberba.
Para contar a boa história, Querido
estabelece o “Seminário d’O Capital”, em 1958, como um marco histórico. A
partir de iniciativa do filósofo José Arthur Giannotti, se reúnem nomes como
Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Paul Singer, Roberto Schwarz, Michael
Löwy e Francisco Weffort, entre outros, para estudar a obra de Karl Marx. O que
propicia o encontro quinzenal nas tardes de sábado é o ambiente intelectual
instado pela Universidade de São Paulo e sua Faculdade de Filosofia na mítica
Rua Maria Antônia.
A USP surge em 1934 como reação das elites paulistas derrotadas na Revolução Constitucionalista de 1932 pelo governo federal de Getúlio Vargas e seu projeto de desenvolvimento. O ditador gaúcho acredita na indução estatista como motor para o crescimento econômico. Os liberais de São Paulo defendem a iniciativa privada como ator principal na modernização. O confronto entre arcaico e moderno vinha já desde o Império, quando a sociedade se dividira entre a manutenção da escravidão como mão de obra e a industrialização dos meios de produção. Durante o governo de Dom Pedro II, um tipo não muito afeito à livre circulação de dinheiro, alguns parlamentares se horrorizam quando o Banco do Brasil, sob gestão do barão de Mauá, começou a emprestar a juros considerados baixos. Aquilo provocaria um mau costume entre a população…
Antes de tudo, os intelectuais estudiosos de
Karl Marx buscavam entender o onipresente atraso brasileiro, os motivos capazes
de explicar a incapacidade de modernização. Por que um país bonito por natureza
se mostrava contundente em sua afeição pelo arcaico, enquanto o restante do
mundo ocidental conseguia aproveitar as chances para criar riqueza e, em alguns
casos, diminuir a desigualdade social? Apesar de o modelo econômico getulista
ter alcançado vários êxitos, baseava-se numa estrutura econômica limitada,
populista e autoritária.
Entre os participantes dos seminários, havia
divergências políticas e, é óbvio, de métodos para enfrentar a realidade.
Florestan Fernandes baseava suas análises a partir da sociologia — a cultura,
os hábitos e até o modo de ser do brasileiro poderiam explicar o comportamento
errático diante das premissas colocadas pelo desenvolvimento. Outros, como FH e
mesmo Giannotti, todos sob a ótica marxista, buscavam respostas na estrutura
econômica, no duelo entre o rural e o urbano, o arcaico da produção e o pensamento
industrial. Schwarz talvez resuma as contradições quando estuda Machado de
Assis e percebe a esquizofrenia entre liberalismo e escravismo. Até a picardia
machadiana é vista como elemento reativo, ou arma, para enfrentar as
incoerências da sociedade brasileira.
Vale lembrar que os integrantes dos
seminários, ocorridos em duas edições, se colocam contra os métodos e análises
praticados pelo Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Veem como
ultrapassados seus militantes e suas estratégias. Não consideram acertado
sequer quando elegem parte da burguesia nacional (sem o capital estrangeiro,
por favor) como aliada. Naquele momento, os comunistas acreditam que os efeitos
da industrialização são necessários para eliminar a desigualdade social. Como
sabemos, a coisa deu ruim, e o Brasil continua desigual.
O golpe militar de 1964 acaba com a festa da
esquerda nacionalista. E compromete a esquerda paulista acadêmica — vários dos
intelectuais, como FH, Weffort, Singer, entre outros, são obrigados a fugir do
país. A ruptura é um choque não apenas pela chegada da ditadura, com a prisão
de centenas de opositores, mas pelo retorno de uma visão
nacional-desenvolvimentista de cepa militar na economia. Isso já é história.
Pode-se dizer que, dos seminários e das
visões divergentes de seus integrantes, resultaram os dois principais partidos
da redemocratização. O PT, a
partir de 1980, terá nomes como Florestan, Weffort e Schwarz entre seus
fundadores. E o PSDB,
surgido em 1988 de uma costela do PMDB, é obra de intelectuais como FH e
Giannotti.
O PSDB, já morto. E o PT, decadente. Foi a
soberba, baby.
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