terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Eunice, Fernanda e a luta contra o esquecimento - Patrícia Machado*

Correio Braziliense

A história de Eunice Paiva, vivida intensamente por Fernanda Torres, nos lembra que a memória é um campo de batalha onde o esquecimento e a impunidade precisam ser confrontados

Em uma das cenas mais emblemáticas protagonizadas por Fernanda Torres em Ainda estou aqui, da areia da praia a personagem Eunice Paiva olha para a rua enquanto a família feliz se reúne para uma fotografia. Fernanda não diz nada, mas, com um olhar expressivo, que se direciona para longe da câmera, antevê o futuro. Ali, a personagem pressente o que está por vir. A passagem de um veículo do Exército pela orla da praia de Ipanema contrasta com o dia ensolarado e anuncia tempos trágicos para a família Paiva e para o Brasil.

Hoje, o país comemora a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, que encarnou a história de uma mulher que foi vítima da ditadura militar. Para além das lutas políticas de Rubens e Eunice, o filme foca em um momento que sintetiza os efeitos de uma política autoritária que perpetua a impunidade. Na sala de cinema, assistimos aos policiais invadirem a casa de um deputado, homem de classe média alta, e o levarem embora, sem nenhuma explicação. Rubens Paiva nunca mais retorna. Os responsáveis pelo crime não foram punidos, o corpo de Rubens nunca foi encontrado e a justiça não foi feita. Uma história que grande parte do país desconhecia ou simplesmente esqueceu.

Em entrevista recente sobre o filme, Fernanda Torres lembrou que Marcelo Rubens Paiva escreveu seu livro ao perceber que a mãe, Eunice, estava perdendo a memória devido ao Alzheimer. Paralelamente, o Brasil também parecia esquecer a própria história, ela afirma. No cinema brasileiro recente, especialmente após a abertura dos documentos dos arquivos da política e da Comissão Nacional da Verdade (2014), os efeitos do apagamento histórico têm sido tema de algumas produções, como Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, de Carol Benjamin. O documentário enfrenta o silêncio do pai da diretora, que foi preso aos 14 anos, torturado e exilado, para compreender como as histórias pública e privada se entrelaçam sob os efeitos da ditadura. A obra parte da premissa de que a Lei da Anistia, sancionada em 1979, implicou em um pacto que favoreceu o esquecimento e a redenção. Como destaca o historiador Daniel Aarão Reis, a abertura política promovida após quase duas décadas de ditadura foi acompanhada por um esforço deliberado de "construir o esquecimento".

Como resultado dessa política, na última década presenciamos homenagens a torturadores em espaços que deveriam ser dedicados à defesa da democracia, como o Congresso Nacional. Discursos que negam as barbaridades cometidas durante a ditadura ganharam espaço na política, nas mídias sociais, no cotidiano. Mais recentemente, como a personagem vivida por Fernanda Torres, sentimos com agonia o que estava por vir. Um ano antes dos fogos e gritos celebrando a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, testemunhamos nas telas da televisão e dos celulares homens e mulheres vestidos de verde e amarelo invadirem e depredarem as sedes dos Três Poderes, pedindo a volta da ditadura.

O sucesso de Ainda estou aqui chega em um momento crucial, oferecendo um convite à reflexão e à disputa de sentidos em torno da memória e da história. O cinema ocupa um papel fundamental nessa disputa. A história de Eunice Paiva, vivida intensamente por Fernanda Torres, nos lembra que a memória é um campo de batalha no qual o esquecimento e a impunidade precisam ser confrontados. Em tempos de incerteza política, filmes como este reafirmam o poder do cinema em olhar para o passado, elaborar memórias e inspirar a resistência e a luta no presente.

*Pesquisadora e professora da PUC-Rio

 

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