Correio Braziliense
A história de Eunice Paiva, vivida
intensamente por Fernanda Torres, nos lembra que a memória é um campo de
batalha onde o esquecimento e a impunidade precisam ser confrontados
Em uma das cenas mais emblemáticas
protagonizadas por Fernanda Torres em Ainda estou aqui, da areia da praia a
personagem Eunice Paiva olha para a rua enquanto a família feliz se reúne para
uma fotografia. Fernanda não diz nada, mas, com um olhar expressivo, que se
direciona para longe da câmera, antevê o futuro. Ali, a personagem pressente o
que está por vir. A passagem de um veículo do Exército pela orla da praia de
Ipanema contrasta com o dia ensolarado e anuncia tempos trágicos para a família
Paiva e para o Brasil.
Hoje, o país comemora a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, que encarnou a história de uma mulher que foi vítima da ditadura militar. Para além das lutas políticas de Rubens e Eunice, o filme foca em um momento que sintetiza os efeitos de uma política autoritária que perpetua a impunidade. Na sala de cinema, assistimos aos policiais invadirem a casa de um deputado, homem de classe média alta, e o levarem embora, sem nenhuma explicação. Rubens Paiva nunca mais retorna. Os responsáveis pelo crime não foram punidos, o corpo de Rubens nunca foi encontrado e a justiça não foi feita. Uma história que grande parte do país desconhecia ou simplesmente esqueceu.
Em entrevista recente sobre o filme, Fernanda
Torres lembrou que Marcelo Rubens Paiva escreveu seu livro ao perceber que a
mãe, Eunice, estava perdendo a memória devido ao Alzheimer. Paralelamente, o
Brasil também parecia esquecer a própria história, ela afirma. No cinema
brasileiro recente, especialmente após a abertura dos documentos dos arquivos
da política e da Comissão Nacional da Verdade (2014), os efeitos do apagamento
histórico têm sido tema de algumas produções, como Fico te devendo uma carta sobre
o Brasil, de Carol Benjamin. O documentário enfrenta o silêncio do pai da
diretora, que foi preso aos 14 anos, torturado e exilado, para compreender como
as histórias pública e privada se entrelaçam sob os efeitos da ditadura. A obra
parte da premissa de que a Lei da Anistia, sancionada em 1979, implicou em um
pacto que favoreceu o esquecimento e a redenção. Como destaca o historiador
Daniel Aarão Reis, a abertura política promovida após quase duas décadas de
ditadura foi acompanhada por um esforço deliberado de "construir o
esquecimento".
Como resultado dessa política, na última
década presenciamos homenagens a torturadores em espaços que deveriam ser
dedicados à defesa da democracia, como o Congresso Nacional. Discursos que
negam as barbaridades cometidas durante a ditadura ganharam espaço na política,
nas mídias sociais, no cotidiano. Mais recentemente, como a personagem vivida
por Fernanda Torres, sentimos com agonia o que estava por vir. Um ano antes dos
fogos e gritos celebrando a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro,
testemunhamos nas telas da televisão e dos celulares homens e mulheres vestidos
de verde e amarelo invadirem e depredarem as sedes dos Três Poderes, pedindo a
volta da ditadura.
O sucesso de Ainda estou aqui chega em um
momento crucial, oferecendo um convite à reflexão e à disputa de sentidos em
torno da memória e da história. O cinema ocupa um papel fundamental nessa
disputa. A história de Eunice Paiva, vivida intensamente por Fernanda Torres,
nos lembra que a memória é um campo de batalha no qual o esquecimento e a
impunidade precisam ser confrontados. Em tempos de incerteza política, filmes
como este reafirmam o poder do cinema em olhar para o passado, elaborar
memórias e inspirar a resistência e a luta no presente.
*Pesquisadora e professora da PUC-Rio
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