Folha de S. Paulo
Direita deve rechaçar negacionismo das urnas,
e esquerda precisa evitar associar oposição a ameaça democrática
A diplomação do próximo presidente americano
transcorreu sem incidentes. As urnas só são contestadas —como no 6 de janeiro
de 2021— quando Trump perde.
Ou quando Bolsonaro perde.
Nesta quarta, no 8 de janeiro, será nossa vez de lembrarmos a versão
brasileira do pastiche americano.
Em 21 de março de 2022 escrevi nesta Folha:
"De uma coisa podemos ter a mais tranquila certeza: caso perca as
eleições, Bolsonaro tentará desacreditar as urnas e causar tumulto, numa
reedição da invasão do Capitólio americano em janeiro de 2021" na coluna
"O Telegram
tem o direito de ignorar a Justiça brasileira?". Dito e feito.
Não era uma previsão arriscada. A estratégia era explícita.
Aqui, como lá, fomos submetidos a meses de mentiras sobre as urnas, vindas sempre do mesmo grupo. Depois da derrota, o fanatismo precisou de uma catarse. Lá, acreditaram que poderiam impedir a diplomação na marra. Aqui, que a quebradeira dos prédios públicos provocaria uma intervenção militar.
Dois anos depois do 8 de janeiro, uma boa
notícia: segundo pesquisa Quaest, 86% dos brasileiros desaprovam os ataques. E
uma notícia ainda melhor: entre os que votaram em Bolsonaro em 2022, 85%
desaprovam. Como a maioria desses não mudou seu alinhamento político, concluo
que não veem sua posição ideológica como causadora das invasões. Essas foram um
excesso cometido por malucos (ou, talvez, por infiltrados) que não os
representam. Jamais farão, portanto, um "mea culpa".
Isso não é ruim. A pior coisa que pode
acontecer para a preservação da nossa democracia é ela se tornar pauta cativa
de um dos lados do espectro. Foi o destino do combate à corrupção.
Ao transformar-se uma bandeira de ataque da direita contra a esquerda, foi pela
esquerda rejeitado. O mesmo ocorreu, em sinal contrário, com a pauta ambiental.
Combate à corrupção e defesa do meio ambiente fazem
falta. Na medida em que temos um sistema democrático, contudo, ainda podemos
votar para colocá-los em prática. Se ficarmos sem democracia, por outro lado,
não será possível votar para restabelecê-la.
A democracia liberal nada mais é do que uma
maneira de organizar o poder na sociedade. Apesar dos problemas, é a melhor que
conhecemos, pois permite que toda a população tenha voz, que direitos
minoritários sejam protegidos e que o poder troque de mãos pacificamente.
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Sua preservação depende de um pacto
universal: garantir o cumprimento das regras do jogo é mais importante do que a
vitória do meu time na próxima partida. Para isso, as lideranças de direita
devem rechaçar o discurso negacionista das urnas. E a esquerda deve abandonar o
discurso de que toda oposição é uma ameaça à democracia.
Mesmo porque ninguém no Brasil é santo. Basta
lembrar dos escândalos de corrupção para financiar campanhas e do alinhamento
histórico de nossa esquerda com o regime Maduro.
O golpismo de direita não reveste a esquerda do manto democrático.
O filme "Ainda Estou
Aqui" —que rendeu a Fernanda
Torres o merecido Globo
de Ouro—
mostra como uma boa história pode furar as barreiras ideológicas ao tocar
valores humanos universais, sem ser panfletária. Por enquanto, a rejeição ao 8
de janeiro ocupa esse mesmo lugar: todos o condenam. Tenhamos a sabedoria de
preservar essa história sem rebaixá-la ao grau de propaganda partidária.
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