Folha de S. Paulo
Hoje, com o ódio e a violência dominando a política, é impossível não pensar em passagem da vida do estadista que se confundem com a história do país
Em um 15 de janeiro como este, há exatos 40
anos, encerrava-se o ciclo de 21 anos de ditadura militar
com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.
Ao lado de outros companheiros e de milhões
de brasileiros, Tancredo venceu o regime de exceção usando as armas da
democracia, cerzindo com sabedoria e paciência as oportunidades de avanço pelas
frestas da ditadura imposta ao país.
"Acabou o ciclo autoritário; Tancredo é
o 1º presidente civil e de oposição desde 64", foi a manchete da Folha no
dia seguinte.
Nas ruas, a emoção explodia de todas as formas. O Brasil parecia acordar de um longo pesadelo e se reconciliava consigo mesmo. Trago ainda viva na minha memória a imagem de Cazuza no primeiro Rock in Rio cantando "Pro dia nascer feliz" com a bandeira do Brasil nas costas.
Hoje, quando o ódio e a violência dominam a
cena política, quando o debate político atinge inimagináveis baixos níveis de
conteúdo e tolerância, é impossível não lembrar de Tancredo e
reforçar a convicção de que verdadeiros líderes não nascem do improviso. Nesta
data, difícil não relembrar passagens da vida do grande estadista que se
confundem com a história do país.
O Tancredo de 1985 foi o mesmo que, em 1954,
na última reunião do ministério do presidente Vargas, do qual era ministro da
Justiça, se ofereceu para dar voz de prisão aos comandantes militares então
rebelados. "Tancredo, você está louco. Do jeito que as coisas estão, você
pode ser morto", disse um dos presentes. "Na vida, há poucas
oportunidades de morrer por uma boa causa. Não vamos desperdiçar essa",
foi a resposta de Tancredo.
Finda a reunião, Getúlio o convocou ao seu
gabinete e lhe ofereceu, sem que ele compreendesse o sentido, a caneta com que,
soube-se depois, acabara de assinar a Carta Testamento. "Uma lembrança
desses dias conturbados", disse o presidente.
Em 1961, o mesmo Tancredo se manifestou a
favor da posse do vice-presidente João Goulart na
Presidência. A articulação de forças antidemocráticas tornou a posse
impossível.
Almino Afonso descreve a sessão do Congresso
que declarou vaga a Presidência da República. "Até hoje me recordo do
deputado Tancredo Neves, em protestos de uma violência verbal inacreditável
para quantos, acostumados à sua elegância de trato, o vissem encarnando com
altivez a revolta que sacudia a consciência democrática do país." No áudio
da sessão, escuta-se, ao fundo, o grito de revolta de Tancredo: "Canalhas,
canalhas", repetia ele.
Ali se iniciava o maior ciclo autoritário de
nossa história.
"Só se lembram de mim na hora da
tempestade", brincava ele.
Veio 1964 e Tancredo foi o único deputado do
PSD que negou o voto ao marechal Castelo Branco, primeiro presidente da
ditadura.
No momento do exílio do presidente Juscelino,
foi uma das pouquíssimas pessoas que o acompanharam até a porta do avião.
Escreveu-lhe o presidente do exílio:
"Lembro-me bem que a sua foi a última mão que apertei antes de me dirigir
ao avião. Naquele instante de brutalidade, a sua presença confortou-me. Aliás,
o que caracteriza bem a sua personalidade é a intrepidez com que enfrenta as
suas e as adversidades dos amigos. Muito obrigado a você... Creio, porém, que a
democracia não é apenas aquela flor tenra a que se referia o Mangabeira. Ela
terá forças para se levantar, sobretudo, porque sobraram homens como você".
Durante a ditadura, iniciou com Ulysses
Guimarães uma parceria nem sempre compreendida por muitos. Tales Ramalho,
personagem importante do período, disse: "Tancredo e Ulysses são parceiros
de uma dança muito singular, cujos passos só os dois conhecem. Quem tenta
entrar no meio acaba tropeçando".
Tancredo estava pronto para 1985. Quis o destino que sua caminhada fosse
interrompida.
"Há homens que dão a vida pelo país.
Tancredo deu mais. Deu a própria morte", disse Afonso Arinos.
Tancredo carregava consigo uma esperança rara nos dias de hoje, lastreada em
coerência e em coragem e que nos ensinava que política só vale a pena quando
construída em torno de causas legítimas para o povo. E a defesa da democracia é
a maior delas.
Celebrar pessoas e marcos que nos fizeram
melhores como nação é exercício necessário de cidadania que não nos deixa
esquecer que política e história não devem ser campos de improvisos e vaidades.
Que possamos reencontrar juntos o sentimento
de pátria que tanto nos inspirou no passado.
*Deputado federal (PSDB-MG) e presidente do Instituto Teotônio Vilela, foi senador (2011-2018) e governador de Minas Gerais (2003-2010)
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