terça-feira, 7 de janeiro de 2025

O Que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Ordem judicial para investigar israelense foi descabida

O Globo

Justiça brasileira extrapolou sua competência em caso de soldado reservista que já saiu do país

A decisão da Justiça Federal de acatar pedido feito pela Fundação Hind Rajab, uma ONG pró-palestina, para que Yuval Vagdani, um soldado reservista israelense de 21 anos de férias na Bahia, fosse investigado sob a suspeita de ter cometido crimes de guerra na Faixa de Gaza foi descabida. O soldado deixou o Brasil no fim de semana, mas o episódio ficará marcado como um excesso do Judiciário local. Coube ao Ministério Público Federal (MPF) explicar que Vagdani não era residente no Brasil e, segundo o Direito Internacional, o Juízo Federal carece de “competência para analisar o tema”.

Em petição feita em dezembro, os advogados Maira Pinheiro e Caio Patricio de Almeida, contatados pela Hind Rajab, pediram apuração na seção judiciária da Bahia. “Após cumprir seu serviço militar como membro do 432º Batalhão das Brigadas Givati e, de maneira sorridente e debochada, documentar a própria participação no cometimento de crimes de guerra, o noticiado [Vagdani] viajou com amigos e encontra-se neste momento em Morro de São Paulo, conforme registro publicado por ele próprio na rede social Instagram em 25 de dezembro de 2024”, escreveram os advogados.

Por julgar não ser o local adequado, o plantão judicial baiano enviou o caso a Brasília, onde a juíza Raquel Soares Chiarelli determinou no dia 30 a abertura de inquérito pela Polícia Federal. Na opinião dos advogados, Vagdani destruiu casas sem justificativa militar e atacou, de forma intencional, civis da Faixa de Gaza sem participação nas hostilidades. Ciente da decisão judicial, a Embaixada de Israel em Brasília manteve contato com o soldado reservista e o ajudou a deixar o Brasil em segurança no último fim de semana. O mais provável é que a ordem de investigação para a PF fosse derrubada assim que revisada por instâncias superiores da Justiça brasileira, mas Vagdani não quis esperar. Em declaração ao jornal israelense Haaretz, o pai do reservista disse ter aconselhado o filho e seus amigos a voltar para casa quanto antes. “Eles rapidamente fizeram as malas e cruzaram a fronteira em poucas horas”, disse o pai.

A notícia logo repercutiu em Israel. Ainda no domingo, o líder da oposição Yair Lapid acusou o governo de Benjamin Netanyahu de “imenso fracasso político” pelo fato de um reservista ter sido forçado a fugir do Brasil “na calada da noite”. Lapid defendeu como solução para evitar problemas iguais no futuro uma comissão de inquérito. “É impossível para os soldados — tanto regulares como da reserva — ter medo de viajar ao exterior”, escreveu numa rede social.

Israel deu início a operação militar depois do ataque sofrido em 7 de outubro de 2023, quando o Hamas invadiu o país, matou por volta de 1.200 pessoas e sequestrou mais de 200. Na Faixa de Gaza, os embates são distintos de uma guerra convencional. Os soldados do Hamas não andam uniformizados, nem operam abertamente. Usam os mais de 2 milhões de palestinos civis como escudo, montando de forma deliberada estoques de armas perto de escolas e hospitais. Em mais de um ano, a devastação provocada pelo conflito bélico é óbvia. O governo local, dominado pelo Hamas, estima o número de mortos em mais de 45.800. Mas querer, de Brasília, determinar se houve crime de guerra e quem o cometeu não é apenas fora da norma legal. É impraticável.

Globo de Ouro destaca audiovisual brasileiro e momento histórico

O Globo

Talento de Fernanda Torres, escolhida melhor atriz de drama, despontou em mercado maduro de produção

Pela atuação no filme “Ainda estou aqui”, Fernanda Torres recebeu o Globo de Ouro de melhor atriz na categoria drama, desbancando concorrentes como Nicole Kidman, Angelina Jolie, Kate Winslet, Tilda Swinton e Pamela Anderson. Artistas brasileiros (Sonia Braga, Wagner Moura e Fernanda Montenegro) concorreram em edições passadas, mas coube a Fernanda Torres ganhar a premiação inédita. Concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, o Globo de Ouro é uma das maiores honras da indústria cinematográfica.

A filha dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres começou sua carreira nos palcos, no cinema e na TV ainda adolescente. De lá para cá, firmou-se como uma das melhores atrizes brasileiras. Em “Ainda estou aqui” (com direção de Walter Salles e produção de VideoFilmes, RT Features e Mact Productions, em coprodução com Globoplay, ARTE France e Conspiração), fez uso da experiência para dar vida a Eunice Paiva, mulher de Rubens Paiva, deputado federal cassado que foi torturado e morto por agentes do Estado durante a ditadura militar.

Embora o prêmio pelo trabalho seja individual, é preciso reconhecer que o talento de Fernanda despontou num dos maiores mercados de produção audiovisual do mundo. A dramaturgia brasileira tem longa tradição, escolas de artes cênicas atraem novos talentos todos os anos, e canais de TV e produções de cinema e de teatro empregam atores de todas as idades. A cadeia completa do audiovisual, da exibição em cinemas à TV aberta, responde por 86.227 empregos formais, segundo o último Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro. No ranking dos países por público nos cinemas, o Brasil ocupa a décima posição. É nesse ecossistema que atrizes como Fernanda Montenegro, homenageada pela filha na premiação em Beverly Hills, percorrem carreiras ao longo de várias décadas.

Além do volume de produção, a qualidade também é uma característica da dramaturgia brasileira. Desde 2009, o Brasil é o maior ganhador de prêmios Emmy Internacional na categoria telenovelas, concedidos para produções feitas fora dos Estados Unidos ou em língua não inglesa para o mercado americano. Foram sete no total, todos para a Globo. Fernanda Torres, no início da carreira, foi premiada como melhor atriz em Cannes pela atuação em “Eu sei que vou te amar”. O filme “Central do Brasil”, também de Salles, recebeu o prêmio de melhor filme no Globo de Ouro de 1999.

Outra dimensão do Globo de Ouro para Fernanda é o momento histórico. “Ainda estou aqui” relembra para quem viveu a ditadura e mostra aos que nasceram após a redemocratização os horrores de um Estado de exceção. Em regimes autoritários, ninguém está livre do arbítrio. A história da persistência de Eunice em denunciar a morte do marido, contada de forma não panfletária, emociona e ensina. Num momento em que o país está investigando uma tentativa de golpe em 2022, mais de 3 milhões assistiram ao filme e outros tantos ouviram falar do enredo. Esse é o maior prêmio.

Governo retoma defesa da agenda microeconômica

Valor Econômico

Para o bem do país, tomara que otimismo do governo em fazer avançar uma pauta que tramita aos trancos e barrancos no Congresso se mostre realista

O governo mais uma vez renovou a esperança de avançar com a pauta microeconômica no Congresso. A agenda, que progride aos trancos e barrancos no Legislativo, tem como objetivos fortalecer os mercados bancário e de capitais, empoderar os investidores em companhias abertas e os credores em processos de falência, com reflexos positivos na redução do custo do crédito, no aumento da produtividade e na eficiência dos mercados.

A ideia de aprovar as medidas está sobre a mesa desde outubro de 2023, quando alguns pontos da agenda microeconômica foram mencionados dentro da proposta de reduzir o Custo Brasil. No início do ano passado, tanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediram apoio à aprovação do pacote de medidas microeconômicas. Somente em março, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), respondeu, prometendo destravar a pauta dos projetos para melhorar o ambiente de negócios e aperfeiçoar o mercado de capitais. Ainda assim, às vésperas da eleição para os novos presidentes da Câmara e do Senado, cinco das oito propostas ainda aguardavam decisão de Lira e nem tinham relator designado.

O projeto de resolução bancária é um exemplo de como as coisas são lentas. Elaborado ainda no governo Bolsonaro sob inspiração das regras internacionais criadas após a crise financeira de 2008, conta com apoio do Banco Central (BC), da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do sistema financeiro. Trata-se do Projeto de Lei Complementar 281/2019 (PL 281), que visa a promover a adesão das práticas brasileiras em casos de reestruturação aos padrões internacionais, conferindo mais poder ao BC para atuar no sistema financeiro, com o objetivo de proteger os interesses públicos. Em novembro foi aprovado o requerimento de urgência, mas não há expectativa de quando o mérito será analisado pelos deputados.

Mas há algum progresso. No primeiro semestre do ano passado, foi aprovado o novo regime legal dos juros, que flexibilizou a aplicação da vetusta Lei da Usura, que vigorava desde o primeiro governo Getúlio Vargas (1930-1945). A nova Lei 14.905/24 estabelece que, na ausência de previsão legal ou contratual específica, o índice de correção monetária previsto no Artigo 389 do Código Civil para a hipótese de descumprimento de obrigações será o IPCA ou outro índice oficial que vier a substituí-lo.

Saiu do forno recentemente a nova lei do contrato de seguros, que moderniza a relação entre empresas e seguradores, acompanhada da lei das associações e cooperativas de seguros. Até a aprovação do novo projeto, o setor obedecia a dispositivos do Código Civil de 2002, que eram cópias da legislação de 1916, ou seja, com mais de um século.

Se em alguns casos a agenda microeconômica funciona como um espanador, tirando a poeira e modernizando legislações antigas, em outros, busca disciplinar novidades. As big techs são um dos alvos de projeto que está em discussão com o Cade. Já o regulamento do funcionamento das instituições operadoras de infraestruturas do mercado financeiro (IMFs), responsáveis por serviços de compensação de débitos e créditos, foi aprovado pela Câmara e agora depende do Senado.

Entre as medidas microeconômicas ainda empacadas no Congresso, estão pautas importantes como as mudanças na Lei de Falências, aprovada pela Câmara e pendente no Senado, que transfere dos juízes para os credores o poder de indicar gestor fiduciário que vai acompanhar os trâmites e fiscalizar o processo falimentar. Considerado de tramitação complexa é o projeto que procura garantir maior proteção a investidores minoritários no mercado de capitais e ampliar a responsabilização de administradores de companhias abertas.

Já a CVM prepara o caminho para dar a pequenas empresas o acesso à emissão de ações no mercado de capitais. Está também em discussão a redefinição das atribuições de regulação do sistema financeiro entre Banco Central, CVM e Susep, para possível implantação do sistema conhecido como “twin peaks”. Ainda não foi para o Congresso o projeto de reforma da tributação das aplicações financeiras, que promete ser complexo e suscitar ampla discussão.

O governo está convencido de que mudanças feitas pelo Congresso ou em nível regulatório já estimularam o mercado de capitais e ampliaram as alternativas de crédito das empresas. O secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Pinto, ressaltou que 2024 foi o melhor ano do mercado de capitais da história, apesar da ausência das emissões de novas ações (IPOs), minimizando o efeito da redução da Selic no primeiro semestre (Valor, 2/1)

Sua confiança de que a pauta microeconômica vai avançar neste ano parece, no entanto, otimista demais, em consequência da prioridade dada pelo próprio governo à questão fiscal. Há ainda a tensão entre os Poderes, elevada principalmente após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino de suspender a execução das emendas parlamentares, sem falar na mudança de comando das duas casas legislativas. Para o bem do país, tomara que o otimismo se mostre realista.

Feliz ano novo, Fernanda Torres

Folha de S. Paulo

Prêmio mostra ao mundo que houve ditadura no Brasil, existiu uma mulher capaz de enfrentá-la e há brasileiras para competir com a nata de Hollywood

Em 31 de março de 1964, um golpe militar deu início no Brasil a uma ditadura progressivamente sanguinária que só chegaria ao fim 21 anos depois. No auge da repressão, dois anos após o AI-5 de 1968, o ex-deputado federal Rubens Paiva foi preso, torturado e assassinado por agentes do Estado; seus restos mortais seguem desaparecidos.

A história de sua viúva, a extraordinária Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, que passa de dona de casa a militante da causa dos direitos humanos e indígenas, é tema do livro "Ainda Estou Aqui", escrito por seu filho, Marcelo Rubens Paiva, autor do sucesso literário "Feliz Ano Velho".

No ano passado, a obra virou filme homônimo dirigido por Walter Salles, e Eunice, morta em 2018 depois de longo período com Alzheimer, ganhou vida na interpretação contida e poderosa de Fernanda Torres.

Na madrugada desta segunda-feira (6), seu talento foi reconhecido por uma das principais honrarias do cinema norte-americano: o Globo de Ouro de melhor atriz de drama. A última brasileira indicada na categoria tinha sido sua mãe, Fernanda Montenegro, 26 anos atrás, por "Central do Brasil", do mesmo Walter Salles —Cate Blanchett levou a melhor na ocasião.

Na escolha do corpo votante da premiação, formado por 334 jornalistas estrangeiros de 85 países, Fernanda Torres bateu medalhões como Angelina Jolie, Nicole Kidman, Kate Winslet e Tilda Swinton. Não é pouca coisa, e sua vitória foi merecidamente celebrada em todo o Brasil, com repercussão similar à dos grandes feitos esportivos.

Prêmios são um poderoso instrumento de soft power, como bem sabem os Estados Unidos, mestres na tática. Mostrar ao mundo que houve uma ditadura no Brasil, que existiu uma mulher capaz de enfrentá-la e que há atrizes a competir em pé de igualdade com a nata de Hollywood é o saldo da noite.

Não é pouco, mas há mais. Internamente, o filme já levou mais de 3 milhões de espectadores às salas de exibição, colocando-se entre as maiores bilheterias da história do cinema brasileiro. É comum ver nos finais das sessões pessoas aplaudindo, chorando ou gritando "sem anistia", em referência a projeto que pode beneficiar condenados por crimes contra o Estado de Direito.

Em seu discurso emocionado de agradecimento, Fernanda disse que "a arte pode durar pela vida, até durante momentos difíceis, como esta incrível Eunice Paiva, que eu fiz, passou. E a mesma coisa está acontecendo agora, em um mundo com tanto medo. E este filme nos ajuda a pensar em como sobreviver em momentos duros como este".

Fernanda, que é colunista da Folha, não está só, como atestam os espectadores de seu filme e pelo menos 69% de brasileiros que, segundo levantamento do Datafolha de dezembro último, defendem a democracia como melhor forma de governo. Ainda estão aqui e são maioria.

Sem reforma, reajuste para servidor vem em má hora

Folha de S. Paulo

Aumentos salariais para todas as carreiras do Executivo custarão R$ 16,8 bi neste ano em que o país corre risco de crise fiscal

Mesmo em meio às dificuldades para a gestão orçamentária e ao crescimento continuado da dívida pública, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu conceder mais reajustes salariais para o funcionalismo até 2026.

Em medida provisória recém-publicada, foram promovidos aumentos para a totalidade dos servidores civis do Executivo, em índice que chegará a 27% até 2026 —incluindo os 9% efetivados em 2023. Também foram reestruturadas carreiras, com transformação de 14.989 cargos vagos e obsoletos em 15.670 novas posições.

Os reajustes devem elevar a despesa de pessoal no Executivo federal de 2,48% do Produto Interno Bruto, no ano passado, para 2,6% em 2025, com impacto de R$ 16,8 bilhões no resultado primário (o saldo entre receitas e despesas antes dos juros).

Por fim, foram ampliadas as faixas de progressão salarial, alongando o prazo para o atingimento da remuneração máxima, o que é correto e deveria ser feito de forma até mais ambiciosa. As carreiras com pelo menos 20 níveis de progressão passaram de 20% para 86% do total.

É lamentável, porém, que o governo opte por medidas pontuais, em vez de uma ampla reforma administrativa que possa dar maior fluidez à gestão de recursos humanos e garantir mais eficiência da máquina estatal.

Reduzir o número de carreiras garantiria melhor trânsito de funcionários para as atividades que se tornam necessárias ao longo do tempo. Além disso, é perigoso, em momento de escassez, privilegiar o uso de recursos públicos para reajustes dessa amplitude, quando deveria haver maior seletividade e prudência.

Tampouco faz sentido estender reajustes a inativos. Eis mais um direto mal adquirido, que infelizmente ainda permanece vigente nas regras para funcionários mais antigos. Quem se aposentou o fez em níveis salariais da época de sua vida ativa.

É necessário também rever o alcance exorbitante da estabilidade no emprego, que faz do Brasil uma anomalia global —e constitui óbvio desincentivo à produtividade dos servidores. Tal garantia deveria ser exclusiva das funções típicas de Estado. No mínimo, deveria ser regulamentada a demissão por mau desempenho, já prevista na Constituição.

Infelizmente, a gestão petista sempre está alinhada ao sindicalismo estatal, com pouca ou nenhuma ênfase na prestação de serviços à população. Ajustes são importantes muitas vezes, mas é preciso maior seletividade e coragem política para reformar uma máquina que funciona mal.

A ameaça do dólar caro

O Estado de S. Paulo

No mercado, já há quem veja o dólar a R$ 7, mas governo Lula finge não ter nada com isso e espera por ‘acomodação’ enquanto ignora os estragos do câmbio nos preços e na economia

A consolidação do patamar cambial de 6 por 1 na relação entre o real e o dólar americano, que ganha contornos de senso comum no mercado neste início de 2025, é uma grave ameaça para a economia brasileira. Entre os países do G-20 – que reúne as maiores economias globais –, o Brasil foi o que assistiu à maior desvalorização de sua moeda ao longo de 2024 e permanece ameaçado pela pressão cambial, que pode levar o dólar a R$ 6,50 ou até mesmo a incríveis R$ 7, como revelaram analistas econômicos em recente reportagem do Estadão.

Obrigado a suspender as férias de janeiro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, retornou a Brasília e, depois de reunião de uma hora e meia com o presidente Lula da Silva, falou a jornalistas negando – para alívio geral – qualquer possibilidade de mudança no regime de câmbio flutuante que vigora no País desde 1999. E preferiu colocar panos quentes na escalada do dólar: “Tem um processo de acomodação natural, e nós tivemos um estresse no final do ano passado no mundo todo. Tivemos aqui um estresse também, no Brasil”.

Esqueceu-se o ministro de citar que a tensão cambial que se espalhou pelo mundo foi mais forte por aqui porque, juntamente com as incertezas que atingiram todos – como o recrudescimento das guerras e a mudança política nos Estados Unidos –, o governo Lula da Silva tratou de ampliar o risco marchando em direção contrária à estabilização econômica. Atitude dolosa que produziu o terceiro maior fluxo cambial negativo dos últimos 25 anos.

Voaram para longe US$ 15,9 bilhões que estavam no País. Em 1999, ano da mudança para o atual regime cambial, a saída chegou a US$ 16,182 bilhões. A partir de 2000, porém, somente em 2019 e 2020 a fuga de capitais superou a do ano passado. Em 2020, a pandemia de covid foi o principal motivo; no ano anterior, o primeiro da gestão Jair Bolsonaro, as causas principais foram internas: crise nas relações entre governo e Congresso, baixo crescimento, juros baixos e indefinição da agenda econômica levaram a uma debandada de US$ 44,7 bilhões.

No fim de 2019, em sua página oficial, o Partido dos Trabalhadores classificou como “um verdadeiro desastre” a “queima das reservas” em mais US$ 10 bilhões na tentativa de conter a alta do dólar, que chegou a R$ 4,25 em novembro e encerrou o ano cotado a R$ 4,01. A título de comparação, somente em dezembro passado, para conter a disparada do dólar, o BC fez a maior injeção de recursos em um único mês desde o início do regime de câmbio flutuante. Foram US$ 21,5 bilhões, cerca de 6% das reservas, que encerraram 2024 em US$ 329,7 bilhões, US$ 25,3 bilhões a menos que no ano anterior.

Se, por um lado, a cotação recorde do dólar pode servir para turbinar o valor das exportações, por outro, causa enorme estrago ao encarecer uma infinidade de insumos, máquinas e equipamentos. O custo mais elevado da produção faz também o câmbio ser repassado internamente. O IGP-M, índice de inflação calculado pela Fundação Getulio Vargas, registrou alta de 6,54% no ano, com contribuição decisiva dos preços no atacado.

Embora Lula da Silva tenha exigido da Petrobras o “abrasileiramento” da política de preços, é inevitável que em algum momento o impacto do dólar chegue à gasolina e ao diesel, e então, num país onde a carga é transportada prioritariamente por rodovias, a inflação tende a se espalhar com mais força. E ainda que a Petrobras exporte 30% de sua produção, a verdade é que a conta não fecha para uma empresa que tem também a dívida bilionária atrelada ao dólar.

O governo deveria tirar os óculos de lentes distorcidas do lulopetismo para enxergar a realidade que se impõe enquanto ainda há tempo de reverter projeções que indicam câmbio pressionado e inflação acima da meta em 2025, 2026 e 2027. Neste momento, somente o anúncio de medidas fiscais tão ambiciosas quanto urgentes seria capaz de restaurar a credibilidade do governo, severamente abalada desde o tímido pacote de corte de gastos, que, sem o apoio firme do presidente, acabou por ser ainda mais esvaziado pelo Congresso.

Maduro rouba eleição, e Brasil vai à posse

O Estado de S. Paulo

O governo brasileiro decidiu enviar representante à posse do ditador venezuelano, estágio final de uma crise contratada pelo compromisso ideológico do lulopetismo com o chavismo

O governo do presidente Lula da Silva enviará uma representante à nova posse do ditador venezuelano Nicolás Maduro, marcada para 10 de janeiro. Será a embaixadora do Brasil na Venezuela, Glivânia Maria de Oliveira. Os exegetas do Palácio do Planalto se apressaram em tentar edulcorar a decisão, destacando que o presidente ficará no Brasil e não enviará nenhum ministro a Caracas, e que a presença da embaixadora não significa que o governo brasileiro reconheceu o resultado da eleição fraudada com mão de ferro pela ditadura chavista. Mais um pouco e dirão que o envio da representante brasileira é uma sanção diplomática para marcar posição.

Como tudo o que diz respeito à imoral relação de Lula da Silva com Maduro e sua ditadura, dá-se aos fatos e aos gestos nomes distintos do que realmente são. Sejamos claros, contudo: só a presença de uma representante do Brasil, independentemente de seu escalão, é uma forma explícita de chancela, aceitação e conivência institucional por parte do governo brasileiro. É o reconhecimento da legitimidade da posse e, por efeito, do resultado da eleição que garantiu o novo mandato a Maduro de maneira reconhecidamente fraudulenta. Mas, na falta de coragem de admiti-lo de maneira oficial, inventa-se um reconhecimento oficioso.

No fim das contas, dá no mesmo: o envio da embaixadora à posse é o estágio final de uma crise contratada há meses, quando o governo Lula resolveu equilibrar entre suas obrigações constitucionais de defesa da democracia e os compromissos ideológicos – e sabe-se lá o que mais – do lulopetismo com o chavismo. Embora o Palácio do Planalto, sob o silêncio cúmplice do Itamaraty, hesite em reconhecer oficialmente o resultado, o fato é que o governo brasileiro jamais admitiu sequer duvidar abertamente da lisura da eleição e do poder de Maduro, apesar de todas as evidências e dos alertas em contrário.

Quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um simulacro da Justiça Eleitoral que se submete às ordens do Palácio de Miraflores, declarou a vitória de Maduro, sabia-se que o ditador não sobreviveria politicamente se respeitasse liberdades individuais e a soberania da vontade popular. Foi porque os chavistas sabiam disso que, do início ao fim, o processo eleitoral foi conspurcado. A oposição não só jamais teve chance real de derrotá-lo, como foi perseguida sistematicamente, incluindo a cassação sumária de candidaturas que, segundo pesquisas independentes, poderiam vencer Maduro, prisões políticas de oposicionistas, intimidação de adversários e violência do Estado contra quem ousou protestar em público contra o regime.

Antes do pleito, o ditador fez ameaças, prevendo uma “guerra civil” caso não fosse eleito e prometendo que o país testemunharia um “banho de sangue” – uma ignóbil incitação à violência política. Depois, autoproclamado vitorioso mesmo que o CNE tenha resistido a fornecer as atas de votação à oposição e aos escassos observadores internacionais presentes na Venezuela, ele continuou a promover arbitrariedades. Dezenas de manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos nos meses seguintes. Há relatos de que as milícias paramilitares conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidaram famílias e jornalistas. O oposicionista Edmundo González Urrutia, que reivindica a vitória eleitoral, é caçado pelas instituições de Maduro, que ofereceram uma recompensa de US$ 100 mil por informações que levem à sua prisão.

Tudo isso sob o silêncio obsequioso do governo lulopetista ou sob declarações que beiraram o escárnio – como aquela em que Lula declarou que a Venezuela realiza mais eleições que o Brasil, e por isso é um país democrático. Ou quando o chanceler de facto Celso Amorim, cobrado a fazer o mesmo que diversos países latino-americanos que haviam emitido notas veementes de repúdio contra Maduro, afirmou, em tom jocoso: “Sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, claro, desde que se trate de tiranos companheiros. Depois da eleição, o regime chavista passou a criticar abertamente Lula e o Itamaraty, chegando a afirmar que o presidente brasileiro estaria a serviço da CIA, o serviço secreto americano. Nem o Brasil reagiu nem, como se reafirma agora, quer distância do chavismo. O lulopetismo é irremediável.

Um prêmio à memória

O Estado de S. Paulo

Ao premiar o talento de Fernanda Torres, Globo de Ouro dá ainda mais visibilidade ao horror da ditadura

O Globo de Ouro de Melhor Atriz concedido a Fernanda Torres não é apenas a coroação de um trabalho sublime da artista brasileira, cuja atuação tocante no filme Ainda Estou Aqui permitiu que ela, mesmo falando em português, se sagrasse vencedora em uma disputa com intérpretes anglófonas da qualidade de Tilda Swinton, Kate Winslet e Nicole Kidman. O feito de Fernanda Torres e do filme que ela estrela vai além da consagração artística: serve para levar ao mundo a história dos horrores da ditadura militar brasileira – da qual muitos por aqui sentem saudade.

Como se sabe, Ainda Estou Aqui conta a história da prisão e do desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva, em janeiro de 1971, durante o auge do regime militar, e de como sua mulher, Eunice Paiva, lidou com a truculência da ditadura ao mesmo tempo que tinha de proteger os filhos e reinventar sua família.

Trata-se de uma história particularmente simbólica: Rubens Paiva foi preso e morto nos porões da ditadura mesmo sem ter qualquer participação relevante na resistência ao regime. Na madrugada de 1.º de abril de 1964, quando o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart estava em curso, Paiva, então deputado pelo PTB, fez um discurso na Rádio Nacional em que apelou aos brasileiros que se mobilizassem “tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade”. Foi cassado e se exilou na Europa. Em 1965, já de volta ao Brasil, continuou a manter contato com outros exilados, mas havia deixado de vez a política, limitando-se a trabalhar como engenheiro e a cuidar da família, no Rio de Janeiro.

Ou seja, nem Rubens Paiva nem seus amigos representavam qualquer ameaça ao regime militar – e mesmo se fossem, não haveria justificativa para que Paiva sumisse enquanto estava sob custódia do Estado. Mas ditadores são paranoicos e, nessa condição, quebram a bússola moral, tornando-se capazes das piores atrocidades em nome da defesa de uma certa “pátria” contra inimigos que eles inventam – situação na qual ninguém está seguro.

Como o filme mostra, os militares foram não só capazes de prender, torturar e matar um pai de família inocente, como atormentaram a mulher dele, aterrorizaram os filhos do casal e mentiram descaradamente por anos a fio sobre o destino de Rubens Paiva. Cada um dos espectadores sente-se colocado no lugar dos integrantes daquela pacata família de classe média subitamente arrancada de seu mundo e atirada no pesadelo da ditadura – em que as leis deixam de valer, para dar lugar ao arbítrio dos pequenos tiranos a quem o regime deu poder de vida e morte sobre os cidadãos.

É aqui que entra a genialidade de Fernanda Torres, capaz de dar vida e alma a uma Eunice Paiva que resolveu não se vergar à tirania nem deixar que o Brasil esquecesse. Se os críticos que a premiaram nos Estados Unidos perceberam isso, não se sabe; já os brasileiros que lotam as salas de cinema para homenagear a resistência silenciosa e tenaz de Eunice sabem muito bem o que isso significa: que a luta pela manutenção da democracia, em tempos bolsonarianos, é longa, diária e sujeita a trancos, mas vale a pena.

Um prêmio que vai além da arte

Correio Braziliense

O Globo de Ouro concedido à Fernanda Torres traz à tona a obrigação de o Brasil deixar de jogar para baixo do tapete a história como se lixo fosse

O Globo de Ouro concedido à Fernanda Torres é muito mais do que o reconhecimento internacional de uma grande atriz que interpretou uma mulher em guerra contra o Estado brasileiro para que houvesse o reconhecimento de que fora o responsável pela morte e pelo desaparecimento do marido, vítima do arbítrio e do cinismo da ditadura militar. A premiação vem em um momento no qual o país discute não apenas o assanhamento do extremismo político, inimigo declarado do Estado Democrático de Direito, mas, principalmente, se a Lei da Anistia abrange o crime de ocultação de cadáver.

Ainda estou aqui mostra a serena bravura de Eunice Paiva em busca do paradeiro de Rubens Paiva, cuja família sabia estar morto, mas que a bandidagem dos porões da tortura negou a dignidade da entrega do corpo para que dele pudesse se despedir. Essa regra mínima de civilidade também foi interditada a muitas outras pessoas, que até hoje não sabem onde estão os despojos de pais, filhos e irmãos. Sob o óbito presumido, foram-se sem que se derramasse o pranto da saudade.

Tal indignidade, porém, é escarnecida por grupos radicais, que por torpeza cultivam a ditadura militar como exemplo de (fantasiosa) virtude. A invasão às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 foi o exemplo mais recente da manipulação da ignorância: pela violência, principal argumento do extremismo, tentou-se derrubar um governo legitimamente eleito por acreditarem que o morto e inexistente comunismo seria implantado no Brasil. Esse terrível episódio completa dois anos amanhã, e é vergonhoso que no Congresso haja parlamentares que desprezem sua importância.

O prêmio de Fernanda reforça, também, a dúvida sobre se a Lei da Anistia vale para a ocultação de cadáver. Para o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), é crime continuado e, portanto, imprescritível. A manifestação foi no âmbito de denúncia do Ministério Público Federal (MPF), de 2015, contra Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, e Lício Augusto Ribeiro Maciel. Ex-militares do Exército, eles são acusados de assassinato e desaparecimento de corpos de militantes de esquerda na Guerrilha do Araguaia. Curió, assassino confesso — ele admitiu as mortes no livro Mata! O Major Curió e as guerrilhas do Araguaia (Cia das Letras), do jornalista Leonencio Nossa —, foi recebido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, em 4 de maio de 2020, e saudado como "herói da pátria".

Em paralelo à discussão no STF, na Câmara tramita o Projeto de Lei nº 2.086/24, que altera o Código Penal para aumentar a punição do crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver. Do deputado Jonas Donizete (PSB-SP), está parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) à espera de relator e de boa vontade para ser analisado.

Daí porque o prêmio de Fernanda transcende a arte. Esse Globo de Ouro traz à tona a obrigação de o Brasil deixar de jogar para baixo do tapete a história como se lixo fosse.

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