domingo, 9 de março de 2025

'Ainda Estou Aqui' abre portas para mudanças na sociedade - Sylvia Colombo

Folha de S. Paulo

Obras como a de Walter Salles, que venceu Oscar de melhor filme internacional, iluminam as consciências

"Quem vai atrás de osso é cachorro", já disse Jair Bolsonaro, referindo-se à busca por desaparecidos da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Quando contei isso para Mariela Fumagalli, diretora da Eeaf (Equipe de Antropologia Forense Argentina), fez-se uma pausa na conversa. "Não é possível que uma parte considerável da sociedade se expresse dessa maneira. Se na Argentina há quem concorde com essa visão, ela é minoritária e envergonhada", me respondeu.

A entidade que ela comanda trabalha desde 1984 na busca, recuperação, identificação e restituição da identidade das vítimas do terrorismo de Estado no país. Desde sua criação, revelou os nomes de 840 pessoas, algumas enterradas em cemitérios clandestinos, outras encontradas às margens do rio da Prata por terem sido arremessadas nos chamados "voos da morte". Todo ano, esse número aumenta, porque o trabalho nunca foi interrompido.

Hoje, a Eaaf exporta sua expertise. Já ajudou em casos ocorridos na América Central e, recentemente, na identificação de soldados argentinos enterrados sem nome nas ilhas Malvinas. "Podemos atuar a pedido de entidades, governos ou mesmo de particulares", afirma Fumagalli.

A Eeaf não é a única organização não governamental que se dedica a esclarecer os crimes da ditadura. Também há as Avós da Praça de Maio, que buscam netos, ou seja, filhos de desaparecidos, e que para isso montaram um rico arquivo de DNA de pais, mães e avós para cotejar com pessoas que as procurem, em dúvida, sobre sua identidade.

A Argentina usa a interpretação de que crimes cometidos por civis prescrevem, mas não os perpetrados pelo Estado. Por conta disso, já foram condenados mais de mil repressores, num país que há muito derrubou leis de anistia.

Esses órgãos não dependem do governo de turno para continuar. Claro que, durante gestões de direita ou de centro-direita, esse trabalho encontra mais dificuldade, mas nunca deixa de ser feito. A razão, conta Fumagalli, é que, apesar de baseados em políticas públicas tomadas nos anos 1980, "foram apoiados e incorporados por uma sociedade". E consciente por quê? Porque se informa por livros, filmes e outros instrumentos que fazem com que o período nunca caia no esquecimento.

Durante a gestão de Mauricio Macri, por exemplo, houve a ideia de aliviar a pena de genocidas de avançada idade, ao incorporar em suas condenações o período em que ficaram em prisão preventiva. A manifestação popular foi tão grande que tomou as ruas do centro e cercou o Congresso. A ideia foi retirada de discussão.

Já o atual presidente, Javier Milei, adepto da teoria dos dois demônios, ou seja, que coloca em mesmo patamar os crimes cometidos por guerrilheiros e pela repressão, foi alvo de intensas manifestações, ainda durante a campanha eleitoral. Após mais de um ano de governo, não voltou a falar sobre o assunto.

"Talvez o caso de Rubens Paiva, se tivesse ocorrido na Argentina, tivesse uma solução mais rápida", diz Fumagalli.

A diferença, na Argentina, não foi apenas o fato de que pesou muito a desmoralização dos militares nas Malvinas. Houve uma pressão da sociedade civil para esclarecer a verdade.

É nesse sentido que filmes como "Ainda Estou Aqui" são importantes. Eles iluminam as consciências. "Não é à toa que a Argentina tem uma longa história no que diz respeito a filmes sobre o período", diz Fumagalli.

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