Folha de S. Paulo
Obras como a de Walter Salles, que venceu
Oscar de melhor filme internacional, iluminam as consciências
"Quem vai atrás de osso é
cachorro", já disse Jair
Bolsonaro, referindo-se à busca por desaparecidos da ditadura
militar brasileira (1964-1985).
Quando contei isso para Mariela Fumagalli,
diretora da Eeaf (Equipe de Antropologia Forense Argentina),
fez-se uma pausa na conversa. "Não é possível que uma parte considerável
da sociedade se expresse dessa maneira. Se na Argentina há quem concorde com
essa visão, ela é minoritária e envergonhada", me respondeu.
A entidade que ela comanda trabalha desde 1984 na busca, recuperação, identificação e restituição da identidade das vítimas do terrorismo de Estado no país. Desde sua criação, revelou os nomes de 840 pessoas, algumas enterradas em cemitérios clandestinos, outras encontradas às margens do rio da Prata por terem sido arremessadas nos chamados "voos da morte". Todo ano, esse número aumenta, porque o trabalho nunca foi interrompido.
Hoje, a Eaaf exporta sua expertise. Já ajudou
em casos ocorridos na América Central e, recentemente, na identificação de
soldados argentinos enterrados
sem nome nas ilhas Malvinas. "Podemos atuar a pedido de entidades,
governos ou mesmo de particulares", afirma Fumagalli.
A Eeaf não é a única organização não
governamental que se dedica a esclarecer os crimes da ditadura. Também há
as Avós
da Praça de Maio, que buscam netos, ou seja, filhos de desaparecidos, e que
para isso montaram um rico arquivo de DNA de pais, mães e avós para cotejar com
pessoas que as procurem, em dúvida, sobre sua identidade.
A Argentina usa a interpretação de que crimes
cometidos por civis prescrevem, mas não os perpetrados pelo Estado. Por conta
disso, já foram condenados mais de mil repressores, num país que há muito
derrubou leis de anistia.
Esses órgãos não dependem do governo de turno
para continuar. Claro que, durante gestões de direita ou de centro-direita,
esse trabalho encontra mais dificuldade, mas nunca deixa de ser feito. A razão,
conta Fumagalli, é que, apesar de baseados em políticas públicas tomadas nos
anos 1980, "foram apoiados e incorporados por uma sociedade". E
consciente por quê? Porque se informa por livros, filmes e outros instrumentos
que fazem com que o período nunca caia no esquecimento.
Durante a gestão de
Mauricio Macri, por exemplo, houve a ideia de aliviar a pena de genocidas
de avançada idade, ao incorporar em suas condenações o período em que ficaram
em prisão preventiva. A manifestação popular foi tão grande que tomou as ruas
do centro e cercou o Congresso. A ideia foi retirada de discussão.
Já o atual
presidente, Javier Milei, adepto da teoria dos dois demônios, ou seja, que
coloca em
mesmo patamar os crimes cometidos por guerrilheiros e pela repressão, foi
alvo de intensas manifestações, ainda durante a campanha eleitoral. Após mais
de um ano de governo, não voltou a falar sobre o assunto.
"Talvez o caso de Rubens Paiva, se
tivesse ocorrido na Argentina, tivesse uma solução mais rápida", diz
Fumagalli.
A diferença, na Argentina, não foi apenas o
fato de que pesou muito a desmoralização dos militares nas Malvinas. Houve uma
pressão da sociedade civil para esclarecer a verdade.
É nesse sentido que filmes como "Ainda
Estou Aqui" são importantes. Eles iluminam as consciências. "Não
é à toa que a Argentina tem uma longa história no que diz respeito a filmes
sobre o período", diz Fumagalli.
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