sábado, 8 de março de 2025

As melhores intenções – Eduardo Affonso

O Globo

'Ainda estou aqui' é bom por causa do roteiro, da fotografia, da direção, das interpretações — não pelas boas intenções

Ainda estou aqui’ mereceu todos os prêmios que amealhou mundo afora — o Oscar foi só o mais vistoso. E os mereceu não por contar uma história edificante de “resiliência”, “resistência”, “superação”. Nem por ter como protagonista essa nova Antígona, que luta pelo direito de saber a verdade sobre o desaparecimento do marido, poder enterrar seu corpo, conseguir uma certidão de óbito. Ou — usando uma das muitas metáforas do filme — para fazer pelo companheiro e pai de seus filhos o que fez pelo cachorro atropelado na frente de casa. É uma história forte e cheia de simbolismo, filmada enquanto o país ainda se recupera de um quase desastre institucional. Os prêmios reconheceram que havia ali um bom filme. É isso o que importa. Ou deveria importar.

Com os prêmios vieram as críticas. Pouquíssimas voltadas a questões cinematográficas. O filme seria ruim por ignorar os pretos, não por mostrar que também a guerrilha matou inocentes, por glorificar o discreto charme da burguesia em vez de doutrinar corações e mentes e, como se não bastasse, por ter sido feito por um bilionário.

Ao subestimarmos a qualidade estética e nos concentrarmos no viés ideológico, flertamos perigosamente com o finado realismo socialista. Priorizar a “mensagem” é um passo firme rumo à mediocridade bem-intencionada.

Arte não é cartilha. Não é catequese. Para isso existem as fábulas, as parábolas, os apólogos. Arte não se faz com “pessoas do Bem” vencendo “pessoas do Mal” (do Bem somos sempre nós, independentemente do mal que causemos aos que exercem o direito de pensar de outra forma).

É possível um belo filme pró-nazismo – Leni Riefenstahl que o diga. E obras constrangedoras em defesa do meio ambiente, de minorias, de ideais de justiça — nisso, nossa cinematografia tem sido pródiga, com seus voos de bacuraus, suas democracias em vertigem.

“Ainda estou aqui” é bom por causa do roteiro, da fotografia, da direção, das interpretações — não pelas boas intenções. É bom porque reconstrói, com sensibilidade, um período — seu espírito, seus sons, seus olhares —, não por mostrar o enfrentamento de um regime autoritário.

Fernanda Torres fez por merecer todo o sucesso — mas pelo talento, não pelo caráter da personagem que interpreta. Não há como duvidar de que ela faria, de forma igualmente arrebatadora, uma Dona Solange, uma patriota de porta de quartel.

Da mesma forma, “Emilia Pérez” deve ser avaliado pelo que é: um musical extravagante que mistura transexualidade, narcotráfico e estereótipos, sem compromisso com plausibilidade ou pautas identitárias. Karla Sofía Gascón acabou julgada menos por seu desempenho que por suas opiniões — numa espécie da falácia ad hominem.

“O último tango em Paris” é uma obra-prima, em que pese a violência psicológica infligida por Bertolucci e Marlon Brando a Maria Schneider. Coppola não terá primado pela ética, e “Apocalypse now” — com corrupção, danos ambientais, drogas e cadáveres humanos roubados para fazer figuração — é magistral. Hoje, com a compulsiva sinalização de virtudes, estamos mais para “Marcelino, pão e vinho”, seus ensinamentos morais, seu protagonista praticamente concebido sem pecado.

Falta aprender a lição de Chico Buarque: “Mesmo miseráveis os poetas/os seus versos serão bons”. Das melhores intenções, a cinemateca do inferno deve estar cheia.

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