Revista Será?
Não há nada pior para um governo no meio do
mandato do que uma abrupta e consistente queda de popularidade.
Diz a tradição (que remonta a Maquiavel) que
governos devem fazer o “mal”, o mais difícil e impopular, logo em seu início,
para então poder distribuir benesses ao povo na parte final. Maquiavel falava
numa época em que os mandatos não estavam predeterminados e não havia eleições.
Hoje, os governantes não têm mais como seguir o conselho maquiaveliano. A vida
ficou rápida e imprevisível demais, os problemas se acumulam e não há como
programar no calendário as intervenções governamentais. Os governos estão forçados
a seguir as imposições do real. Se forem capacitados, desenham um plano bem
articulado e procuram cumpri-lo, o que não é fácil.
Além disso, em regimes de competição eleitoral permanente, os governos são arrastados por cálculos voltados para as próximas eleições, especialmente quando podem se recandidatar. Condicionam o desempenho governamental aos movimentos eleitorais, o que torna mais difícil fazer “entregas” substantivas à população. Há muita retórica, muitas promessas e pouquíssimo tempo para que frutifiquem. Com isso, o governo se desgasta, se debate com as mãos vazias.
É esse o enrosco em que se meteu o governo
Lula. Ele precisa governar, mas não tem um eixo claro. Precisa produzir
resultados para ver se inverte o viés que mina sua popularidade, mas não
consegue fazer isso. Abusa da retórica e do palanque, antecipando a disputa
eleitoral, e com isso pressiona seus ministros sem conseguir seduzir os
eleitores.
A cada dia, a cada queda na popularidade,
joga os faróis para a frente. Como se pudesse melhorar seu governo tão somente
com articulações eleitorais. Entroniza no Planalto um entourage petista,
que promete (como faz Gleisi Hoffman) “conversar com todos os democratas” sem
deixar de enfatizar o caminho eleitoral. É contraditório. A luta interna no
campo petista repercute no governo, meio que o paralisa, meio que o incentiva a
repetir o passado, sem convidá-lo a se adaptar à realidade do mundo atual.
Defenestrar Nisia Trindade de modo grosseiro,
em nome da exigência de que o Ministério da Saúde faça mais política, é sintoma
de um governo pouco responsável e pouco generoso. Desarticulado.
Passa-se o mesmo com o ofuscamento de Marina
Silva, Simone Tebet e Geraldo Alckmin, melhores expressões da “coalizão
democrática” de Lula. No fundo, não é algo de hoje, mas que remonta a janeiro
de 2023. O governo tomou posse achando que estava com a bola toda, que bastava
a si próprio, erguendo alguns puxadinhos para acomodar aliados e seduzir o
Congresso. Obteve recursos orçamentários adicionais (a PEC da transição) e
achou que isso definiria o caráter do governo. Viu crescer o déficit fiscal e
só não jogou Haddad na fritura (até agora) porque o Ministro da Fazenda tem voo
próprio e o governo não tem opções a ele.
O que houve de aliança em defesa da
democracia em 2022 não mostrou a cara na primeira metade do Lula 3.0. O governo
de coalizão atraiu quase duas dezenas de partidos, que não pensam do mesmo
modo. A maioria deles tem caráter fisiológico. Lula se fechou em torno do PT,
que responde pelo “núcleo duro” do governo e cria arestas com os aliados. O
governo fica entre duas forças, com os aliados correndo para um lado e o PT
para outro, sem maior coesão. Difícil manter o vigor reformador nessas
condições. Lula faz muita política miúda, mas nenhuma “grande política”.
Lula reagiu às pesquisas desfavoráveis
insistindo na comunicação. Trouxe o publicitário Sidônio Palmeira para o
ministério. Mas o problema do governo não é de comunicação, mas sim de definir
o que comunicar. O que será oferecido aos diferentes atores sociais? Lula
parece acreditar que seus eleitores estão na massa mais pobre da população e
que ela continua fiel a seu carisma. Deixou de cortejar as classes médias e o
empresariado. Está perdendo apoio em todos os segmentos.
Em vez de ajustar as finanças públicas e
reformar o Estado para atacar a inflação (que é de alimentos, mas não só) e
bloquear a corrupção, os desvios de dinheiro, as emendas parlamentares
abusivas, Lula gasta o verbo para ocupar terreno conhecido: interpela os que
comparecem a seus comícios em tom sempre mais raso e popularesco, prometendo
mundos e fundos. Abusa do autoelogio e de promessas populistas, na expectativa
de que vinguem até 2026.
Lula e seu governo (seus assessores, seu
partido) permanecem “polarizando” em sentido paralisante e contraprodutivo. Não
veem que a polarização também é de valores, não é mais uma disputa para saber
quem faz mais pelo povo. Redes ativas, opiniões e indivíduos soltos, mudanças
na estrutura produtiva, revolução tecnológica, tudo abalou os modos precedentes
de relacionamento entre governo e população. Não bastam mais entregas
econômicas, políticas assistenciais e retórica passional. A população defende
os benefícios sociais como direitos, não como “marca” de um governante. Sabe
que eles, os benefícios, não serão retirados sem mais nem menos.
Escrevi em A Democracia Desafiada:
“Contraposições inflamadas entre povo e elite, ricos e pobres, progressistas e
reacionários, indivíduos e coletividades, mercado e Estado, são usualmente
manuseadas para que se criem ambientes polarizados ao extremo. Com isso,
disputas secundárias (vinculadas em geral à moralidade) assumem o posto
principal, deslocando para as margens os temas mais decisivos, que são
invariavelmente complexos e demandam entendimentos qualificados”. (p. 124)
Lula tem tempo para se recompor e aprumar. No
entanto, se sua opção for enveredar por uma trilha radicalizada, acabará às
portas de uma crise. Irá se enfraquecer e ficar ao sabor da vontade do
Congresso e do STF. Sua base de sustentação tenderá a se fragmentar e o próprio
PT assistirá ao aguçamento da luta entre suas correntes internas.
O governo alega que falha na comunicação e
que o povo não sabe o que está sendo realizado. A propaganda se dedica a dar
brilho ao que está opaco, a corrigir falas destrambelhadas de integrantes do
governo e a promover a figura do presidente. Como não há projeto de governo, a
comunicação tem pouco o que dizer. Ela também passa a girar em torno da
preparação para a próxima disputa eleitoral.
A comunicação governamental é, evidentemente,
utilíssima. Mas não salva a lavoura, nem serve para baixar a inflação. Ela é
unilateral e pode conter doses excessivas de má informação, de manipulação e
distorção. Não interpela os cidadãos, não os leva a pensar criticamente ou a
ver as cartas que estão sendo postas na mesa. Glamouriza o que o governo diz
estar sendo feito.
Para complicar, há o Judiciário, o STF e os
órgãos de controle, que mandam muito mais do que deveriam e fazem política
livremente, com o que vão adquirindo poder sempre maior, submetendo a si o
Congresso, os estados, as prefeituras e, evidentemente, o Executivo. Por essa
via, o STF pesa desproporcionalmente no pouco que há de debate público.
O governo ora se entrega ao STF e capitula,
ora tenta comer pelas bordas. Anuncia ideias e projetos tópicos, recompõe o
ministério, cede aqui e ali, bate na mesa, faz cara de mau para os grandes e
suaviza quando deseja adular as multidões, mas não executa praticamente nada,
como se não tivesse braços políticos ou não soubesse empregá-los.
Vai, desse modo, cavando uma cova na qual se
refugia e tenta respirar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.