domingo, 9 de março de 2025

O governo começa, enfim, a ver a obviedade - Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo

Não há como restabelecer a sanidade econômica sem a contenção da demanda. Nesse caso, a solução inclui, como ponto essencial, um controle severo do gasto público federal

Empenhado em descobrir e redescobrir o óbvio, o governo anunciou a intenção de investir na formação de estoques de alimentos, essenciais para garantir alguma normalidade nos preços e assegurar o abastecimento a mais de 200 milhões de consumidores. Assombrados durante meses pela inflação da comida, esses brasileiros viram o presidente Lula e seus ministros mobilizarem-se, finalmente, para cuidar da nova ameaça à popularidade presidencial.

Seguida durante décadas, a política de estoques de segurança foi amplamente relaxada nos últimos dez anos – e até abandonada, no caso de alguns produtos. Entre 1987 e 2024, o estoque total de arroz disponível em dezembro superou em 14 anos 1 milhão de toneladas. No mesmo período, o milho estocado no fim de ano ultrapassou 1 milhão de toneladas em 22 ocasiões e, em vários momentos, ficou acima de 2 milhões e até 3 milhões de toneladas.

Esses volumes, mantidos pelo governo e pelo setor privado, diminuíram muito nos últimos anos. No caso do arroz, quase foram zerados a partir de 2023. Quanto ao milho estocado, desde junho de 2018 ficou sempre abaixo de 1 milhão de toneladas. Reservas de feijão, outro componente tradicional da dieta brasileira, praticamente sumiram das estatísticas oficiais a partir de 2017.

Medidas anunciadas pelo governo incluem corte de impostos federais e facilitação de importações. Ainda seria necessário convencer os governos estaduais a reduzir seus tributos. Essas providências talvez produzam algum resultado, mas especialistas e empresários mostraram ceticismo em relação a essas políticas. O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de milho e de carnes. Parece pouco provável a obtenção de milho mais barato no mercado internacional. Também a carne estrangeira, segundo as primeiras avaliações, dificilmente chegará em condições favoráveis à maior parte dos consumidores. Já se fala em subsídios federais, mas esse tipo de solução parece especialmente complicado quando se pensa no estado precário das contas públicas.

O governo também tem prometido amplo apoio financeiro à próxima safra de alimentos básicos. Mas produtos em desenvolvimento ou ainda em plantio só chegarão ao consumidor depois da colheita e, em alguns casos, de alguma elaboração. Tem-se falado em safra recorde, mas comida no prato é assunto mais complicado. Alguns preços têm caído, revertendo o movimento observado entre o final de 2024 e o começo deste ano. Essa acomodação, no entanto, é independente dos planos e falatórios noticiados nos últimos dias.

Depois de meio mandato com expansão econômica, aumento de emprego e elevação do consumo, o governo trombou, de forma provavelmente inesperada nos gabinetes de Brasília, com uma explosão de preços dolorosa para a maioria das famílias. Segundo especialistas em pesquisas de opinião, o surto inflacionário pode ser uma das principais explicações para a piora da imagem presidencial. Mas o salto dos preços nada contém de espantoso.

A aceleração do consumo sem um correspondente aumento da oferta resultou, simplesmente e de forma previsível, no encarecimento de vários itens de consumo. Talvez nenhum membro do governo tenha previsto esse efeito, mas ninguém, a rigor, deveria descrever esse fato como surpreendente. O quadro inclui, naturalmente, a gastança federal como um de seus componentes centrais, talvez o mais importante.

Soluções conjunturais, como a liberação de importações e a redução de impostos sobre um grupo de produtos, podem produzir algum efeito imediato – algo a ser conferido –, mas de nenhum modo atingem o problema básico. Não há como restabelecer a sanidade econômica sem a contenção da demanda. Nesse caso, a solução inclui, como ponto essencial, um controle severo do gasto público federal. Em outras palavras, o tratamento envolve, necessariamente, o abandono da gastança promovida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Não parece haver, nesse quadro, espaço para um afrouxamento da política monetária. Haverá uma enorme surpresa se o Banco Central (BC) apressar o rebaixamento dos juros. Aperto monetário, no Brasil, tem sido normalmente associado pelo próprio BC à insegurança em relação às contas do governo. A manutenção de juros elevados também deverá complicar duplamente a administração federal. Se dificultar o crescimento econômico, prejudicará a arrecadação de impostos. Além disso, juros mais altos acabarão encarecendo a dívida pública e aumentando as pressões sobre o poder central.

Se for capaz de assumir a necessária disciplina, o governo tornará possível um crescimento mais seguro e mais prolongado, embora, talvez, em ritmo mais moderado. Em troca dessa moderação, ganhará a segurança de menor risco inflacionário e de maior previsibilidade, condição relevante para a expansão contínua do investimento produtivo. Quanto aos cidadãos, ficarão menos sujeitos ao desafio diário dos preços instáveis e imprevisíveis e também do crédito inseguro e sempre duvidoso. Falta verificar se alguém convencerá o presidente dessas vantagens.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.