terça-feira, 4 de março de 2025

O iliberal – Pedro Doria

O Globo

A gente vem tratando as ideologias políticas como caricaturas faz tanto tempo que muita compreensão se perdeu. Este segundo governo de Donald Trump é bastante diferente do primeiro. Se o Trump de 2017 era essencialmente confuso e caótico, para este de 2025 podemos lançar mão de muitas palavras, mas uma é mais importante do que todas as outras. É um governo iliberal. Esse “i”, que denota o oposto do liberalismo, representa uma ruptura brusca a respeito do que os Estados Unidos foram, pelo menos nos últimos cem anos. Em essência, estamos entrando em terreno desconhecido e potencialmente perigoso.

Esqueçam, pois, a caricatura que a esquerda latino-americana faz dos Estados Unidos e do liberalismo. Uma crença fundamental move a ideia americana: que um mundo com mais democracias liberais operando com economias de mercado é ideal para os Estados Unidos. As razões são algumas. Democracias são mais estáveis que ditaduras, e democracias, quando têm problemas entre si, resolvem à mesa, talvez com mecanismos multilaterais. Além disso, democracias com economias de mercado são particularmente abertas ao comércio. Essa dinâmica enriquece a todos.

Claro: os Estados Unidos promoveram ditaduras, organizaram golpes, se meteram em guerras. É porque, entre o discurso e a prática, há um vácuo tão grande que é fácil transformar o país e suas ações numa caricatura. Pois é. O mundo é complicado.

A cada momento da História, a visão americana é adaptada por um grupo de pensadores ao mundo que enxergam. No período da Guerra Fria, duas crenças moldaram esse olhar. Primeira, que a ameaça soviética era tamanha que o ideal democrático precisava ser adiado em prol de conter o avanço comunista. A segunda era a Teoria do Efeito Dominó. Quando um país se torna comunista, os vizinhos seguem. As crenças tornaram os Estados Unidos um país paranoico e predatório. Mas, assim, nacionalistas estatistas de esquerda, como Mohammad Mosaddegh, no Irã, ou João Goulart, aqui no Brasil, pareceram ameaças que precisavam ser encaradas. O golpe da CIA em Teerã, nossas ditaduras militares e o Vietnã se explicam assim.

De formas diferentes, Jimmy Carter e Ronald Reagan mudaram isso. Carter porque resgatou os ideais mais profundos das democracias liberais; Reagan porque, diferentemente dos antecessores, enxergou a fragilidade da União Soviética pelo que era.

Nos anos 1990, duas novas visões se apresentaram. A neoconservadora defendia que era possível impor regimes democráticos à força. Tentaram no Iraque, foi um desastre. No rastro do fracasso, o Partido Republicano ficou sem novas ideias. Mas os liberais, embasados pelo cientista político Francis Fukuyama, apostavam que democracias nascem de baixo para cima. É a sociedade civil de cada país que impõe democracias.

A partir do governo de Bill Clinton, com Madeleine Albright na secretaria de Estado, muito dinheiro foi distribuído para ONGs, sindicatos, iniciativas jornalísticas, universidades. O dinheiro veio direto de Washington ou por entidades como Open Society e fundações como Ford ou Gates. Tudo, sempre, na crença de que aumentar a educação, melhorar a saúde, ampliar acesso a informação e estimular conversas faz brotar democracias.

Paranoicos à esquerda, em lugares como a Ucrânia, e à direita, na Hungria, viram nesse tipo de iniciativa algum plano malévolo de domínio. Não era. Esse tipo de estímulo, que começou engatinhando com Jimmy Carter, que ganhou consistência teórica com Fukuyama e que foi mantido por Clinton e Obama, fortaleceu uma aliança de democracias pelo mundo.

Trump rejeita as premissas liberais. Não é capaz de compreender que economias de mercado, livres de barreiras artificiais, geram enriquecimento para todos. Sua visão é pré-capitalista, é mercantilista. Se um ganha, é porque o outro perde. Para que ele ganhe, é preciso derrotar os outros. Ele não acredita no uso da força econômica americana para estimular sociedades democráticas pelo mundo. O dinheiro da Usaid e todos os outros recursos precisam ser cortados, pois representam algo de sinistro. Ele não acredita em oferecer segurança a aliados. Por isso criará mais nações fortes e armadas. À Alemanha, à França, ao Japão, o recado está dado. Cada país que se garanta por si. Trump não acredita sequer no uso do soft power americano para seduzir. Ao contrário: quer assustar, quer se impor e deseja se isolar.

Sim, muitos da esquerda não toleram os Estados Unidos pelo que eram. Tudo certo, é seu direito. Mas que ninguém se iluda: a alternativa que começa a se apresentar é um pesadelo em potencial. O mundo pré-moderno quer irromper.

 

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