O Globo
A gente vem tratando as ideologias políticas
como caricaturas faz tanto tempo que muita compreensão se perdeu. Este segundo
governo de Donald Trump é
bastante diferente do primeiro. Se o Trump de 2017 era essencialmente confuso e
caótico, para este de 2025 podemos lançar mão de muitas palavras, mas uma é
mais importante do que todas as outras. É um governo iliberal. Esse “i”, que
denota o oposto do liberalismo, representa uma ruptura brusca a respeito do que
os Estados
Unidos foram, pelo menos nos últimos cem anos. Em essência, estamos
entrando em terreno desconhecido e potencialmente perigoso.
Esqueçam, pois, a caricatura que a esquerda latino-americana faz dos Estados Unidos e do liberalismo. Uma crença fundamental move a ideia americana: que um mundo com mais democracias liberais operando com economias de mercado é ideal para os Estados Unidos. As razões são algumas. Democracias são mais estáveis que ditaduras, e democracias, quando têm problemas entre si, resolvem à mesa, talvez com mecanismos multilaterais. Além disso, democracias com economias de mercado são particularmente abertas ao comércio. Essa dinâmica enriquece a todos.
Claro: os Estados Unidos promoveram
ditaduras, organizaram golpes, se meteram em guerras. É porque, entre o
discurso e a prática, há um vácuo tão grande que é fácil transformar o país e
suas ações numa caricatura. Pois é. O mundo é complicado.
A cada momento da História, a visão americana
é adaptada por um grupo de pensadores ao mundo que enxergam. No período da
Guerra Fria, duas crenças moldaram esse olhar. Primeira, que a ameaça soviética
era tamanha que o ideal democrático precisava ser adiado em prol de conter o
avanço comunista. A segunda era a Teoria do Efeito Dominó. Quando um país se
torna comunista, os vizinhos seguem. As crenças tornaram os Estados Unidos um
país paranoico e predatório. Mas, assim, nacionalistas estatistas de esquerda, como
Mohammad Mosaddegh, no Irã, ou João Goulart, aqui no Brasil, pareceram ameaças
que precisavam ser encaradas. O golpe da CIA em Teerã, nossas ditaduras
militares e o Vietnã se explicam assim.
De formas diferentes, Jimmy Carter e Ronald
Reagan mudaram isso. Carter porque resgatou os ideais mais profundos das
democracias liberais; Reagan porque, diferentemente dos antecessores, enxergou
a fragilidade da União Soviética pelo que era.
Nos anos 1990, duas novas visões se
apresentaram. A neoconservadora defendia que era possível impor regimes
democráticos à força. Tentaram no Iraque, foi um desastre. No rastro do
fracasso, o Partido Republicano ficou sem novas ideias. Mas os liberais, embasados
pelo cientista político Francis Fukuyama, apostavam que democracias nascem de
baixo para cima. É a sociedade civil de cada país que impõe democracias.
A partir do governo de Bill Clinton, com
Madeleine Albright na secretaria de Estado, muito dinheiro foi distribuído para
ONGs, sindicatos, iniciativas jornalísticas, universidades. O dinheiro veio
direto de Washington ou por entidades como Open Society e fundações como Ford
ou Gates. Tudo, sempre, na crença de que aumentar a educação, melhorar a saúde,
ampliar acesso a informação e estimular conversas faz brotar democracias.
Paranoicos à esquerda, em lugares como a
Ucrânia, e à direita, na Hungria, viram nesse tipo de iniciativa algum plano
malévolo de domínio. Não era. Esse tipo de estímulo, que começou engatinhando
com Jimmy Carter, que ganhou consistência teórica com Fukuyama e que foi
mantido por Clinton e Obama, fortaleceu uma aliança de democracias pelo mundo.
Trump rejeita as premissas liberais. Não é
capaz de compreender que economias de mercado, livres de barreiras artificiais,
geram enriquecimento para todos. Sua visão é pré-capitalista, é mercantilista.
Se um ganha, é porque o outro perde. Para que ele ganhe, é preciso derrotar os
outros. Ele não acredita no uso da força econômica americana para estimular
sociedades democráticas pelo mundo. O dinheiro da Usaid e todos os outros
recursos precisam ser cortados, pois representam algo de sinistro. Ele não acredita
em oferecer segurança a aliados. Por isso criará mais nações fortes e armadas.
À Alemanha, à França, ao Japão, o recado está dado. Cada país que se garanta
por si. Trump não acredita sequer no uso do soft power americano para seduzir.
Ao contrário: quer assustar, quer se impor e deseja se isolar.
Sim, muitos da esquerda não toleram os
Estados Unidos pelo que eram. Tudo certo, é seu direito. Mas que ninguém se
iluda: a alternativa que começa a se apresentar é um pesadelo em potencial. O
mundo pré-moderno quer irromper.
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