sábado, 1 de março de 2025

Soberanias em conflito – Pablo Ortellado

O Globo

O debate sobre se as decisões de Moraes são razoáveis ou excessivas em relação à plataforma Rumble precisa ocorrer dentro do Brasil, pelas vias institucionais apropriadas

As plataformas de mídia social Rumble e Truth Social (a segunda de propriedade do presidente americano, Donald Trump) processaram o ministro Alexandre de Moraes nos Estados Unidos acusando-o de violação da soberania americana, sob o argumento de que extrapolou sua autoridade ao tentar impor censura extraterritorial sobre empresas do país. A decisão da juíza, que considerou o processo prematuro, foi noticiada, nos Estados Unidos, como vitória da Rumble e, no Brasil, como vitória do ministro Alexandre de Moraes. O caso escalou com uma nota da embaixada americana afirmando que “bloquear o acesso à informação e impor multas a empresas sediadas nos EUA por se recusarem a censurar indivíduos que lá vivem é incompatível com os valores democráticos”. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil respondeu dizendo que “o Departamento de Estado distorce o sentido das decisões do Supremo Tribunal Federal, cujos efeitos destinam-se a assegurar a aplicação, no território nacional, da legislação brasileira pertinente”.

O processo da Rumble tem duas partes principais. Numa delas, a empresa acusa Moraes de ordenar bloqueios de contas que ultrapassam as fronteiras nacionais. O debate gira em torno da ordem para bloquear perfis de Allan dos Santos, sob acusação de disseminar discursos “antidemocráticos”. O youtuber bolsonarista é foragido da Justiça no Brasil, mas, segundo a Rumble, está legalmente nos Estados Unidos. A Rumble alega que a ordem para bloquear a conta não afeta apenas usuários brasileiros da plataforma, mas usuários de todo o mundo, inclusive americanos, que não poderão acessar as publicações, mesmo que sejam legais nos Estados Unidos, onde são protegidas pela liberdade de expressão.

As empresas alegam que “essas diretrizes estendem inaceitavelmente o poder judicial brasileiro a atividades lícitas nos Estados Unidos, limitando a capacidade da Rumble e da TMTG de fornecer conteúdo protegido pela Primeira Emenda dentro do território americano”. O argumento parece razoável e seria facilmente resolvido com um bloqueio limitado aos usuários brasileiros da plataforma.

Ainda não se sabe se a decisão de Moraes pediu o bloqueio global ou se apenas deixou de especificar que a aplicação deveria se dar apenas no Brasil. Caso tenha sido intencionalmente global, a justificativa provável seria evitar que brasileiros usassem aplicativos VPNs —que permitem simular estar em outro país —para burlá-la. Se essa foi a intenção, Moraes errou ao extrapolar sua jurisdição.

No segundo ponto do processo, a empresa contesta o entendimento que STF e TSE vêm construindo, segundo o qual empresas estrangeiras que servem o mercado brasileiro precisam constituir representante legal no país. Para a Justiça brasileira, esses representantes precisam ser constituídos para que possam ser notificados, responsabilizados e sancionados por decisões das Cortes aqui. Se as empresas se negam a constituir representante, a Justiça pode responder bloqueando todo o serviço da plataforma, sob a alegação de que ela se recusa a se submeter à legislação brasileira.

A lei não determina expressamente que empresas estrangeiras devem ter representante legal no Brasil. No entanto STF e TSE interpretaram que essa exigência decorre do artigo 11 do Marco Civil da Internet, ao estabelecer que qualquer serviço de internet operando no Brasil deve obedecer à legislação brasileira. Sem um mecanismo desse tipo, a Justiça brasileira não teria instrumentos para fazer valer a determinação do artigo 11.

Rumble e Truth Social alegam, porém, que a obrigação de constituir representante é um mecanismo coercivo, porque vem acompanhada da ameaça de bloqueios e multas pesadas, e que decisões da Justiça brasileira deveriam ser encaminhadas por meio dos canais normais de cooperação internacional, como as cartas rogatórias.

Esses mecanismos de cooperação internacional, no entanto, são eficientes apenas quando há coincidência entre as legislações dos dois países. Quando se trata de um ilícito no Brasil —como os ataques a instituições democráticas — que não é considerado ilícito no país de destino da ordem, ela não é cumprida. No Brasil, como na maioria dos países democráticos, a liberdade de expressão tem claros limites quando conflita com outros direitos, enquanto nos Estados Unidos é protegida mesmo em casos extremos, como discursos nazistas.

Se a Rumble vencer a disputa, não será a lei brasileira que se imporá sobre uma empresa americana, mas exatamente o contrário: o modelo excepcional dos Estados Unidos para a liberdade de expressão será imposto aos brasileiros — um modelo que destoa significativamente do adotado por todas as outras democracias liberais, onde há limites claros para discursos nocivos. O debate sobre se as decisões de Moraes são razoáveis ou excessivas precisa ocorrer dentro do Brasil, pelas vias institucionais apropriadas, e não ser encerrado por mecanismos que, na prática, impõem uma legislação estrangeira ao país.

 

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