O Globo
O debate sobre se as decisões de Moraes são
razoáveis ou excessivas em relação à plataforma Rumble precisa ocorrer dentro
do Brasil, pelas vias institucionais apropriadas
As plataformas de mídia social Rumble e Truth Social (a segunda de propriedade do presidente americano, Donald Trump) processaram o ministro Alexandre de Moraes nos Estados Unidos acusando-o de violação da soberania americana, sob o argumento de que extrapolou sua autoridade ao tentar impor censura extraterritorial sobre empresas do país. A decisão da juíza, que considerou o processo prematuro, foi noticiada, nos Estados Unidos, como vitória da Rumble e, no Brasil, como vitória do ministro Alexandre de Moraes. O caso escalou com uma nota da embaixada americana afirmando que “bloquear o acesso à informação e impor multas a empresas sediadas nos EUA por se recusarem a censurar indivíduos que lá vivem é incompatível com os valores democráticos”. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil respondeu dizendo que “o Departamento de Estado distorce o sentido das decisões do Supremo Tribunal Federal, cujos efeitos destinam-se a assegurar a aplicação, no território nacional, da legislação brasileira pertinente”.
O processo da Rumble tem duas partes
principais. Numa delas, a empresa acusa Moraes de ordenar bloqueios de contas
que ultrapassam as fronteiras nacionais. O debate gira em torno da ordem para
bloquear perfis de Allan dos Santos, sob acusação de disseminar discursos
“antidemocráticos”. O youtuber bolsonarista é foragido da Justiça no Brasil,
mas, segundo a Rumble, está legalmente nos Estados Unidos. A Rumble alega que a
ordem para bloquear a conta não afeta apenas usuários brasileiros da
plataforma, mas usuários de todo o mundo, inclusive americanos, que não poderão
acessar as publicações, mesmo que sejam legais nos Estados Unidos, onde são
protegidas pela liberdade de expressão.
As empresas alegam que “essas diretrizes
estendem inaceitavelmente o poder judicial brasileiro a atividades lícitas nos
Estados Unidos, limitando a capacidade da Rumble e da TMTG de fornecer conteúdo
protegido pela Primeira Emenda dentro do território americano”. O argumento
parece razoável e seria facilmente resolvido com um bloqueio limitado aos
usuários brasileiros da plataforma.
Ainda não se sabe se a decisão de Moraes
pediu o bloqueio global ou se apenas deixou de especificar que a aplicação
deveria se dar apenas no Brasil. Caso tenha sido intencionalmente global, a
justificativa provável seria evitar que brasileiros usassem aplicativos VPNs
—que permitem simular estar em outro país —para burlá-la. Se essa foi a
intenção, Moraes errou ao extrapolar sua jurisdição.
No segundo ponto do processo, a empresa
contesta o entendimento que STF e
TSE vêm construindo, segundo o qual empresas estrangeiras que servem o mercado
brasileiro precisam constituir representante legal no país. Para a Justiça
brasileira, esses representantes precisam ser constituídos para que possam ser
notificados, responsabilizados e sancionados por decisões das Cortes aqui. Se
as empresas se negam a constituir representante, a Justiça pode responder
bloqueando todo o serviço da plataforma, sob a alegação de que ela se recusa a
se submeter à legislação brasileira.
A lei não determina expressamente que
empresas estrangeiras devem ter representante legal no Brasil. No entanto STF e
TSE interpretaram que essa exigência decorre do artigo 11 do Marco Civil da
Internet, ao estabelecer que qualquer serviço de internet operando no Brasil
deve obedecer à legislação brasileira. Sem um mecanismo desse tipo, a Justiça
brasileira não teria instrumentos para fazer valer a determinação do artigo 11.
Rumble e Truth Social alegam, porém, que a
obrigação de constituir representante é um mecanismo coercivo, porque vem
acompanhada da ameaça de bloqueios e multas pesadas, e que decisões da Justiça
brasileira deveriam ser encaminhadas por meio dos canais normais de cooperação
internacional, como as cartas rogatórias.
Esses mecanismos de cooperação internacional,
no entanto, são eficientes apenas quando há coincidência entre as legislações
dos dois países. Quando se trata de um ilícito no Brasil —como os ataques a
instituições democráticas — que não é considerado ilícito no país de destino da
ordem, ela não é cumprida. No Brasil, como na maioria dos países democráticos,
a liberdade de expressão tem claros limites quando conflita com outros
direitos, enquanto nos Estados Unidos é protegida mesmo em casos extremos, como
discursos nazistas.
Se a Rumble vencer a disputa, não será a lei
brasileira que se imporá sobre uma empresa americana, mas exatamente o
contrário: o modelo excepcional dos Estados Unidos para a liberdade de
expressão será imposto aos brasileiros — um modelo que destoa significativamente
do adotado por todas as outras democracias liberais, onde há limites claros
para discursos nocivos. O debate sobre se as decisões de Moraes são razoáveis
ou excessivas precisa ocorrer dentro do Brasil, pelas vias institucionais
apropriadas, e não ser encerrado por mecanismos que, na prática, impõem uma
legislação estrangeira ao país.
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