Mauricio Meireles / Folha de S. Paulo
Ao lado de historiador, professor lança livro
sobre Nova República, critica atuação do Supremo e diz que intelectuais
deveriam respeitar o Congresso
A Nova
República foi fundada na construção de consensos entre elites
políticas. Esse traço pode ser visto como negativo ou positivo. Por um lado,
tais negociações impediram soluções definitivas para desigualdades que marcam a
sociedade brasileira; por outro, também evitaram que os conflitos descambassem
em violência, produzindo estabilidade.
Esse é um dos eixos de "Democracia
Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República", do
historiador Leonardo
Weller e do cientista político Fernando
Limongi, ambos professores da FGV-SP.
No livro, os dois retornam à lenta transição
iniciada no governo de Ernesto
Geisel para mostrar como a ditadura se empenhou para que a direita
continuasse a ter seu quinhão de poder na democracia —e, de fato, vários
aliados do regime conseguiram se perpetuar. Os autores passam pelos embates na
Constituinte e avançam por diversos governos, até chegar ao impeachment
de Dilma Rousseff (PT), em 2016.
O resultado é uma síntese informativa sobre a
história recente do país. A dupla defende que a democracia brasileira viveu seu
auge entre o governo Itamar
Franco e a gestão da petista —quando, à direita ou à esquerda, havia
um consenso em defesa de avanços sociais.
Agora, bem, agora é tudo mais complicado, diz
Limongi à Folha. Ele defende que não adianta espernear contra o
conservadorismo da sociedade brasileira, diz que os intelectuais do país
deveriam respeitar o Congresso como voz da sociedade e sustenta que o Supremo Tribunal Federal não
tem capacidade para tutelar o sistema político.
Uma grande preocupação da ditadura é que, após a transição, a direita pudesse continuar no poder. E várias lideranças desse campo, de fato, conseguiram continuar na política. O sistema que nasce na Nova República tende ao conservadorismo ou esse traço é uma vocação do eleitor brasileiro?
Difícil dizer. Mas não há um viés institucional que provoque maior ou
menor conservadorismo.
Não há nenhum preceito, é o funcionamento da democracia. A democracia é
intrinsecamente conservadora, o jogo democrático tende para o centro.
Você precisa negociar, você não consegue impor a sua vontade. Aqui, a pressão por reformas e mudança bate no Executivo —e a pressão por conservação também.
Há coisas que a maioria da população não
quer. Ela pode ser mais conservadora em questões morais, culturais, e isso é
uma coisa com a qual você tem que viver. Se você é um pouco mais moderninho,
mas a maioria é conservadora, viva com isso. Você não pode impor sua visão, mas
isso não quer dizer que a culpa seja das instituições.
Não podemos chegar a um acordo, por exemplo,
sobre permitir ou não o aborto. Não há um meio termo. Ou pode ou não pode.
Nosso sistema é majoritário e permite, pelo Congresso, que a sociedade seja
ouvida. Há uma tendência nas análises no Brasil de desrespeitar o Legislativo
como uma expressão da sociedade.
Em que sentido?
Para fazer uma referência, por exemplo, ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que falou que cabe ao Supremo empurrar uma agenda modernizadora… Quando a corte tentou avançar na questão do aborto, criou-se um problema. Tanto FHC quanto Lula queriam ter ido mais à frente nesse ponto, mas sentiram que a sociedade não queria porque o Congresso expressou isso, e precisaram moderar posições.
Aí vem o Supremo e dá a reação que deu. Parte
dessa reação é: "Vocês não estão me ouvindo? Estamos dizendo que não é
para fazer isso!". A sensibilidade dos políticos e a negociação deles
precisa ser valorizada. Os intelectuais brasileiros menosprezam o Congresso o
tempo inteiro.
A visão negativa do Legislativo e a
identificação dele com o centrão, acho que isso é uma reação ideológica e
desrespeitosa com as instituições representativas. É como se o Congresso não
fosse legítimo. Respeite o resultado da eleição. Se não gostou, trabalhe para
inverter. O Brasil é isso aí, um país mais conservador em valores.
Um dos seus pontos centrais é como a Nova República não foi capaz de romper com a herança da ditadura. As investigações sobre os atos golpistas —e, agora, a denúncia contra os envolvidos— sinaliza um rompimento dessa cultura de conciliação?
Um ponto ausente do livro é uma análise de como a Constituinte reforçou demais
o poder tanto do Executivo quanto do Judiciário, representado no Supremo. Esse
fortalecimento vem de uma desconfiança do Legislativo porque você acha que o
Congresso vai ser necessariamente conservador. Essa ideia é vista como fato,
vem desde os anos 1970, ou até antes.
No começo do sistema, como esses juízes do
Supremo ainda vêm do regime militar, eles têm outra cabeça e não intervêm
tanto. A partir da crise do mensalão e da derrubada da cláusula de barreira
pelo Supremo, é o sinal de que o STF resolveu que vai tutelar o sistema
político —e que a desconfiança não deve ser só quanto ao Legislativo, mas
também quanto ao Executivo. Partindo de uma interpretação equivocada do que
seria o tal presidencialismo de coalizão.
O Supremo não tem a menor condição de
reorganizar o sistema político porque não sabe como o sistema funciona, tem
ideias mirabolantes. Aí você tem uma expansão da ação do Supremo —e a ação
contra o Bolsonaro é
parte desse processo.
Não começa com o ex-presidente. Houve o
momento em que o Supremo impediu Lula de ser
candidato, sob a mesma racionalidade, de que o petista seria um perigo para a
democracia. A Lava
Jato é parte desse processo. Posso ser contra o Lula ou contra o
Bolsonaro… Mas há uma intervenção deliberada, sequencial, do Judiciário para
controlar o sistema político. E eu preferia que isso não acontecesse porque
esses caras não são eleitos.
Vê um recuo do Judiciário como algo possível?
Não. Depois que saiu da garrafa, o gênio não volta. Precisaria de uma
consciência de que esse poder é excessivo e milita contra a própria
instituição, para que a própria instituição se contivesse. Mas pensar nisso é
acreditar em fadas, em varinha mágica. Pode se restringir mais, diminuir essa
expansão…
Mas há também um aumento do poder do Congresso, sobretudo desde o governo Michel Temer e em especial sobre o Orçamento, por meio das emendas. Esse é também um gênio já fora da garrafa?
Não acho que esse seja um gênio fora da garrafa, nem que a gente saiba quanto
esse poder do Legislativo realmente aumentou, quanto ele pode ser reconfigurado
etc. Não há nenhuma análise empírica sobre o poder dessas emendas, quem de fato
as controla… Mas é um exagero pensar que todo o Congresso se beneficia delas.
Quem se beneficia é um pequeno grupo.
Estão colocando limites, é mais difícil de voltar ao status quo, mas não quer
dizer que o Executivo perdeu controle sobre o Orçamento. Perdeu sobre uma
parcela pequena. Para um grupo de deputados? Sim. O que esse grupo está fazendo
e quais as consequências para o sistema político? Ainda é uma incógnita.
O que sabemos de estudos do passado, antes
deste momento de agora, é que emenda não dava tanta vantagem eleitoral quanto
se achava. Emenda é parte desse folclore, dessa desconfiança de que o Congresso
vai ser sempre uma baixaria.
Boa parte desse argumento anti-Legislativo se
baseia numa suposição de que alguém sabe qual seria a distribuição ótima dos
recursos das emendas. Quem tem essa informação? O planejador central? Os
economistas neoliberais, que não pensam no sistema de informação necessário
para ver quais localidades pedem recursos? Ou o editorialista da Folha?
Parece que o editorialista sabe qual cidade precisa de mais dinheiro para
o SUS.
O sistema representativo produz parte dessa
informação. É preciso ouvir os deputados, não o burocrata dos ministérios da
Saúde, da Educação. Há distorções que vêm disso, não é o melhor sistema? Ok,
mas não é o pior. Há uma gritaria sobre isso que é demasiada.
O cenário para 2026 aponta para mais uma disputa bipartidária, como tem sido a regra na Nova República?
Tem muito imponderável aí para fazer qualquer chute. Eleição majoritária, mesmo
com dois turnos, tende a ter poucos candidatos. Mesmo que nominalmente haja
muitos, os viáveis tendem a ser dois e meio —esse meio sendo a tal da terceira
via. Se não chover canivete, vai dar isso. Ainda mais quando o presidente é
candidato à reeleição, muito provavelmente ele está no segundo turno.
Temos muitos governadores em estados centrais
completando seu segundo mandato. Para quem é ambicioso, em vez de ir para
presidente, pode ir para governador. A incógnita é o Tarcísio
de Freitas [Republicanos], governador de São Paulo. Depende da organização
da direita, se Bolsonaro é candidato, se apoia o governador paulista… A outra é
a saúde do Lula, dado o efeito Joe Biden.
Quando vocês dizem que a Nova República viveu um auge entre Itamar e Dilma, isso significa que estamos vivendo um declínio agora?
Antes havia maior moderação, uma agenda comum. Avanços em saúde, educação e
proteção social eram consensos. Bolsonaro chacoalha esse consenso e diz que vai
desfazer tudo o que foi feito depois da redemocratização. E Paulo Guedes diz
que tudo o que cheira a Estado tem que sair.
Não fizeram nada disso. Fizeram muita
bobagem, destruíram muita coisa, mas não reverteram. Quando se viram na
necessidade de fazer campanha para a reeleição, o fizeram da forma mais
irresponsável fiscalmente e politicamente possível. Fizeram o receituário do
fiscal irresponsável e ampliação de gastos sociais.
Isso diz algo. Qualquer tentativa de reverter
esse processo de maior atenção social não tem suporte político-eleitoral. E
isso é bom.
Então, de um lado, talvez estejamos
exagerando demais o conflito no plano cultural, moral, prestando muita atenção
ao simbólico, sem perceber o que está na base. Por exemplo, no pacote fiscal
que o ministro
Fernando Haddad estava armando, todo o problema sempre foi onde
cortar. E onde tem para cortar? Só gasto social. Aí é duro, o custo político é
muito alto.
Outra questão é o manejo da vinculação entre
política social e política salarial. Houve uma valorização real do salário
mínimo, e isso impacta o maior gasto social, que é a Previdência. Haddad jogou
como balão de ensaio desconectar as duas coisas, mas ninguém aceita, é perigoso
porque o governo vai ter um incentivo para diminuir o pagamento da Previdência.
E isso bate nas pessoas. Então, o governo atou as próprias mãos.
Dá uma falta de flexibilidade, mas o mundo é
o que é. Não vamos ter um crescimento maravilhoso porque é assim que está
funcionando a economia brasileira. É viver com isso aí. E vai ser esse
Congresso. A sociedade brasileira é conservadora, não adianta gritar. É baixar
as expectativas e não ficar gritando que está tudo errado, como um bando de
palmeirenses malucos.
Democracia Negociada - Política Partidária no
Brasil da Nova República
Preço R$ 61 (ebook R$ 43)
Autoria Leonardo Weller e Fernando
Papaterra Limong
Editora FGV (256 págs.)
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