quinta-feira, 17 de abril de 2025

Política e dor de barriga - José de Souza Martins

Valor Econômico

Guardadas as devidas proporções, a doença de Bolsonaro o aproxima de algo que aconteceu com Dom Pedro, que viria a ser o primeiro imperador do Brasil

A recente dor de barriga do ex-presidente Bolsonaro expôs aspectos interessantes do que somos e não somos e de nossa própria história em face da doença de políticos e notáveis. O aspecto mais bonito da ocorrência foi o gesto de civilidade da governadora potiguar, do PT, a professora Fátima Bezerra, em cujo território ocorreu o desconforto.

Providenciou ela um helicóptero do governo para que o doente fosse removido do interior para Natal e ali pudesse ter mais ampla assistência. Ele acabaria removido para Brasília, onde foi submetido a uma demorada cirurgia. Antes, postou agradecimentos, mas não incluiu neles a governadora. Cada um dá de si o que tem. Essa dor de barriga faz revelações e instiga uma visita à nossa história política.

Aqui nenhum político gosta de exibir a fragilidade de uma dor de barriga. Vários deles até estiveram à beira da morte no poder ou no limiar do poder e fingiram que nada tinham ou alguém fingiu por eles a saúde que lhes faltava.

Nossa história tem até episódios cômicos no assunto de doença de político. Rodrigues Alves morreu antes de assumir o segundo mandato. O vice, Delfim Moreira, assumiu, mas não estava em melhor condição, acometido de arterioesclerose precoce. Em visita que lhe fez Ruy Barbosa, estranhou-lhe a ausência do gabinete.

Acabou descobrindo que, paramentado em traje solene, adornado com condecorações, estava escondido atrás da porta. Concluiu Ruy que o presidente do Brasil era um louco. Irregularmente, para que ninguém soubesse que o país era governado por um ausente, governava o ministro de Viação e Obras Públicas.

No geral, doentes graves permanecem no poder em nome do que é em boa parte fingimento de que há normalidade na política.

Com Bolsonaro surgiu uma novidade: dar visibilidade pública a suas enfermidades. Contra as tradições e costumes relativos ao pudor que concebem a doença como assunto privado, quando muito mencionada aos muito próximos. Sempre depois, nunca durante. Aqui, a própria população anseia pela visibilidade da doença dos enfermos.

Há entre nós velha tradição nas famílias, a do prazer em ficar doente, mesmo em situação de grande sofrimento. Entre os pobres é maneira de ter a atenção que no cotidiano adverso não têm. Isso pode explicar a popularidade de um político notável doente. Coisa de um poder enfermo.

No episódio destes dias, Bolsonaro foi atendido pelo SUS porque teve dificuldade para flatar. Gases, segundo testemunho dos que o atenderam. Traduzindo, dor de barriga na linguagem popular e dos antigos. Pensou-se que a causa era alguma coisa que comera. É como costuma diagnosticar o povão, num país em que todo mundo de médico, poeta e louco, tem um pouco.

Guardadas as devidas proporções, a doença de Bolsonaro o aproxima de algo que aconteceu com Dom Pedro, que viria a ser o primeiro imperador do Brasil. O pequeno grupo de pessoas mais próximas que o acompanharam na volta a São Paulo, no dia 7 de setembro de 1822, deixou depoimentos escritos em que narram a agonia do príncipe desde que saíram de Santos, de madrugada, ele montado numa mula baia e não num cavalo napoleônico... Num jantar na véspera, exagerou ele no doce de ovos. Dizem que um dos ovos estava estragado.

Veio Dom Pedro pelo caminho a fazer paradas para se aliviar da disenteria. Na comedida linguagem que assegurava a diferença da nobreza em questões que as pessoas comuns definiam e definem como “ir no mato”, “ir atrás da moita”, quando não dizem cruamente o que lá vão fazer.

Antes da última parada, o príncipe recomendou que a guarda de honra, que o acompanhava à distância, se adiantasse e o esperasse num pouso de tropeiros entre a colina em que está hoje o Museu do Ipiranga e o ribeirão do Ipiranga.

Enquanto isso, à margem do rio Tamanduateí, hoje rio dos Meninos, no que ainda era parte do antigo bairro de São Caetano, o príncipe baixara as calças e se aliviava no mato. Foi quando chegaram do Rio de Janeiro os missivistas enviados pela princesa Leopoldina e por José Bonifácio com as cartas em que lhe informavam as ordens de Lisboa para que retornasse a Portugal.

Recebeu-as o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, acompanhante do príncipe, que lhe pediu as lesse em voz alta. Ali mesmo, enquanto vestia a calça, proclamou Dom Pedro a separação do Brasil em relação a Portugal, às 14h30. Confirmaria a proclamação duas horas depois no Ipiranga, à frente da tropa que o esperava.

A distância dos episódios no tempo não impede que se note o que revelam, pois do mesmo gênero. Não é quem padece que dá sentido à adversidade fisiológica do momento. E sim a personalidade pública do padecente e a notória dificuldade para dar à coisa o nome que a coisa tem.

 

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