Valor Econômico
Guardadas as devidas proporções, a doença de
Bolsonaro o aproxima de algo que aconteceu com Dom Pedro, que viria a ser o
primeiro imperador do Brasil
A recente dor de barriga do ex-presidente
Bolsonaro expôs aspectos interessantes do que somos e não somos e de nossa
própria história em face da doença de políticos e notáveis. O aspecto mais
bonito da ocorrência foi o gesto de civilidade da governadora potiguar, do PT,
a professora Fátima Bezerra, em cujo território ocorreu o desconforto.
Providenciou ela um helicóptero do governo para que o doente fosse removido do interior para Natal e ali pudesse ter mais ampla assistência. Ele acabaria removido para Brasília, onde foi submetido a uma demorada cirurgia. Antes, postou agradecimentos, mas não incluiu neles a governadora. Cada um dá de si o que tem. Essa dor de barriga faz revelações e instiga uma visita à nossa história política.
Aqui nenhum político gosta de exibir a
fragilidade de uma dor de barriga. Vários deles até estiveram à beira da morte
no poder ou no limiar do poder e fingiram que nada tinham ou alguém fingiu por
eles a saúde que lhes faltava.
Nossa história tem até episódios cômicos no
assunto de doença de político. Rodrigues Alves morreu antes de assumir o
segundo mandato. O vice, Delfim Moreira, assumiu, mas não estava em melhor
condição, acometido de arterioesclerose precoce. Em visita que lhe fez Ruy
Barbosa, estranhou-lhe a ausência do gabinete.
Acabou descobrindo que, paramentado em traje
solene, adornado com condecorações, estava escondido atrás da porta. Concluiu
Ruy que o presidente do Brasil era um louco. Irregularmente, para que ninguém
soubesse que o país era governado por um ausente, governava o ministro de
Viação e Obras Públicas.
No geral, doentes graves permanecem no poder
em nome do que é em boa parte fingimento de que há normalidade na política.
Com Bolsonaro surgiu uma novidade: dar
visibilidade pública a suas enfermidades. Contra as tradições e costumes
relativos ao pudor que concebem a doença como assunto privado, quando muito
mencionada aos muito próximos. Sempre depois, nunca durante. Aqui, a própria
população anseia pela visibilidade da doença dos enfermos.
Há entre nós velha tradição nas famílias, a
do prazer em ficar doente, mesmo em situação de grande sofrimento. Entre os
pobres é maneira de ter a atenção que no cotidiano adverso não têm. Isso pode
explicar a popularidade de um político notável doente. Coisa de um poder
enfermo.
No episódio destes dias, Bolsonaro foi
atendido pelo SUS porque teve dificuldade para flatar. Gases, segundo
testemunho dos que o atenderam. Traduzindo, dor de barriga na linguagem popular
e dos antigos. Pensou-se que a causa era alguma coisa que comera. É como
costuma diagnosticar o povão, num país em que todo mundo de médico, poeta e
louco, tem um pouco.
Guardadas as devidas proporções, a doença de
Bolsonaro o aproxima de algo que aconteceu com Dom Pedro, que viria a ser o
primeiro imperador do Brasil. O pequeno grupo de pessoas mais próximas que o
acompanharam na volta a São Paulo, no dia 7 de setembro de 1822, deixou
depoimentos escritos em que narram a agonia do príncipe desde que saíram de
Santos, de madrugada, ele montado numa mula baia e não num cavalo
napoleônico... Num jantar na véspera, exagerou ele no doce de ovos. Dizem que
um dos ovos estava estragado.
Veio Dom Pedro pelo caminho a fazer paradas
para se aliviar da disenteria. Na comedida linguagem que assegurava a diferença
da nobreza em questões que as pessoas comuns definiam e definem como “ir no
mato”, “ir atrás da moita”, quando não dizem cruamente o que lá vão fazer.
Antes da última parada, o príncipe recomendou
que a guarda de honra, que o acompanhava à distância, se adiantasse e o
esperasse num pouso de tropeiros entre a colina em que está hoje o Museu do
Ipiranga e o ribeirão do Ipiranga.
Enquanto isso, à margem do rio Tamanduateí,
hoje rio dos Meninos, no que ainda era parte do antigo bairro de São Caetano, o
príncipe baixara as calças e se aliviava no mato. Foi quando chegaram do Rio de
Janeiro os missivistas enviados pela princesa Leopoldina e por José Bonifácio
com as cartas em que lhe informavam as ordens de Lisboa para que retornasse a
Portugal.
Recebeu-as o padre Belchior Pinheiro de
Oliveira, acompanhante do príncipe, que lhe pediu as lesse em voz alta. Ali
mesmo, enquanto vestia a calça, proclamou Dom Pedro a separação do Brasil em
relação a Portugal, às 14h30. Confirmaria a proclamação duas horas depois no
Ipiranga, à frente da tropa que o esperava.
A distância dos episódios no tempo não impede
que se note o que revelam, pois do mesmo gênero. Não é quem padece que dá
sentido à adversidade fisiológica do momento. E sim a personalidade pública do
padecente e a notória dificuldade para dar à coisa o nome que a coisa tem.
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