sábado, 26 de abril de 2025

Precisamos dar voz aos invisíveis - Pablo Ortellado

O

Globo

Antagonismo, na verdade, é puxado por pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população

Nos últimos meses, venho liderando uma ampla pesquisa que investiga a natureza da polarização política no Brasil. Aproveito o espaço desta coluna para compartilhar alguns entendimentos e resultados preliminares desse trabalho, que ajudam a desenhar um retrato mais preciso do conflito que atravessa nossa sociedade.

A polarização política parece envolver toda a sociedade, mas o antagonismo, na verdade, é puxado por pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população, ladeados por segmentos “semiativistas”, que compõem outros 15%. Entre esses dois polos, há uma grande maioria silenciosa, silenciada, de aproximadamente 60% do Brasil — são os invisíveis.Essa maioria — moderada e um pouco desinteressada de política — se torna invisível pela agitação ativista dos polos nas mídias sociais, que terminam se fazendo passar pelo todo. Quando dividimos mentalmente o Brasil entre petistas e bolsonaristas, não apenas representamos o país de maneira imprecisa, mas bloqueamos também qualquer discussão de propostas matizadas e independentes, porque acreditamos que não contemplariam grupos que erroneamente acreditamos majoritários.

A divisão da sociedade brasileira, induzida pelos polos, está concentrada nos temas das guerras culturais, batalhas em torno dos valores morais relacionados à família e à sexualidade. Sob essas disputas, há blocos de quase consenso em torno do papel do Estado, da punição a criminosos e do combate ao racismo. Há amplo consenso de que o Estado deve prover serviços públicos, mas divergimos cada vez mais sobre temas como o ensino de questões de gênero nas escolas e o direito de portar armas.

No entanto, mesmo nos temas divisivos das guerras culturais, há mais antagonismo afetivo — hostilidade pelo adversário —do que propriamente divergência de opinião. Embora os grupos antagônicos se imaginem radicalmente diferentes, eles muitas vezes secretamente convergem. Progressistas e conservadores razoavelmente convergem no respeito às mulheres e na defesa da família — ao mesmo tempo que conservadores desconfiam e desgostam das feministas, e progressistas desconfiam e desgostam dos conservadores. O que afasta os dois grupos não é tanto a divergência, mas a animosidade contra o grupo adversário, uma animosidade que tende à violência.

O polo conservador é um pouco maior e demograficamente mais próximo do Brasil médio: pardo e com escolaridade de ensino médio. O polo progressista, embora se veja como porta-voz dos grupos oprimidos, é muito mais branco, muito mais escolarizado, muito mais sudestino e muito mais rico que o resto do país. Não se trata apenas de uma contradição entre o conteúdo do discurso progressista e a condição social de quem o enuncia. Essas características demográficas são a base material de sustentação ao discurso populista conservador que apresenta as elites intelectuais como alienadas, empenhadas em predicar para um povo majoritariamente conservador.

Como atribuem ao progressismo o domínio do establishment e dos aparelhos culturais, os conservadores têm muito pouca confiança em instituições como a Justiça, as universidades públicas e a grande imprensa. O inverso é verdadeiro: os progressistas, que outrora se viam como revolucionários, se acomodaram na defesa do statu quo.

Não devemos confundir a polarização política com a disputa eleitoral. Elas influenciam uma à outra, mas são essencialmente diferentes. A liderança do presidente Lula amplia muito o apelo eleitoral da esquerda, para além do progressismo. A memória das melhorias econômicas passadas faz com que parte do eleitorado conservador vote em Lula. Quando o presidente finalmente deixar o jogo eleitoral, deveremos ver com mais frequência o antagonismo eleitoral entre elites urbanas escolarizadas e o povo comum, a que assistimos nas eleições municipais do Rio e de São Paulo, com Marcelo Freixo e Guilherme Boulos. Apesar disso, sempre que a esquerda apelar para o discurso da proteção social, poderá equilibrar o jogo eleitoral.

Há ainda muito a estudar, mas os resultados iniciais impõem uma agenda. Nosso desafio é dar visibilidade à maioria silenciosa, ainda não polarizada, e resgatar o espaço dos consensos possíveis, abafados pelo barulho das margens. Se não conseguirmos desarmar o antagonismo afetivo entre esses pequenos grupos, corremos o risco de assistir a uma espiral crescente de hostilidade que pode precipitar o país na violência política — ou na ruptura institucional.

 

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