O
GloboAntagonismo, na verdade, é puxado por
pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população
Nos últimos meses, venho liderando uma ampla
pesquisa que investiga a natureza da polarização política no Brasil. Aproveito
o espaço desta coluna para compartilhar alguns entendimentos e resultados
preliminares desse trabalho, que ajudam a desenhar um retrato mais preciso do
conflito que atravessa nossa sociedade.
A polarização política parece envolver toda a sociedade, mas o antagonismo, na verdade, é puxado por pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população, ladeados por segmentos “semiativistas”, que compõem outros 15%. Entre esses dois polos, há uma grande maioria silenciosa, silenciada, de aproximadamente 60% do Brasil — são os invisíveis.Essa maioria — moderada e um pouco desinteressada de política — se torna invisível pela agitação ativista dos polos nas mídias sociais, que terminam se fazendo passar pelo todo. Quando dividimos mentalmente o Brasil entre petistas e bolsonaristas, não apenas representamos o país de maneira imprecisa, mas bloqueamos também qualquer discussão de propostas matizadas e independentes, porque acreditamos que não contemplariam grupos que erroneamente acreditamos majoritários.
A divisão da sociedade brasileira, induzida
pelos polos, está concentrada nos temas das guerras culturais, batalhas em
torno dos valores morais relacionados à família e à sexualidade. Sob essas
disputas, há blocos de quase consenso em torno do papel do Estado, da punição a
criminosos e do combate ao racismo. Há amplo consenso de que o Estado deve
prover serviços públicos, mas divergimos cada vez mais sobre temas como o
ensino de questões de gênero nas escolas e o direito de portar armas.
No entanto, mesmo nos temas divisivos das
guerras culturais, há mais antagonismo afetivo — hostilidade pelo adversário
—do que propriamente divergência de opinião. Embora os grupos antagônicos se
imaginem radicalmente diferentes, eles muitas vezes secretamente convergem.
Progressistas e conservadores razoavelmente convergem no respeito às mulheres e
na defesa da família — ao mesmo tempo que conservadores desconfiam e desgostam
das feministas, e progressistas desconfiam e desgostam dos conservadores. O que
afasta os dois grupos não é tanto a divergência, mas a animosidade contra o
grupo adversário, uma animosidade que tende à violência.
O polo conservador é um pouco maior e
demograficamente mais próximo do Brasil médio: pardo e com escolaridade de
ensino médio. O polo progressista, embora se veja como porta-voz dos grupos
oprimidos, é muito mais branco, muito mais escolarizado, muito mais sudestino e
muito mais rico que o resto do país. Não se trata apenas de uma contradição
entre o conteúdo do discurso progressista e a condição social de quem o
enuncia. Essas características demográficas são a base material de sustentação
ao discurso populista conservador que apresenta as elites intelectuais como
alienadas, empenhadas em predicar para um povo majoritariamente conservador.
Como atribuem ao progressismo o domínio do
establishment e dos aparelhos culturais, os conservadores têm muito pouca
confiança em instituições como a Justiça, as universidades públicas e a grande
imprensa. O inverso é verdadeiro: os progressistas, que outrora se viam como
revolucionários, se acomodaram na defesa do statu quo.
Não devemos confundir a polarização política
com a disputa eleitoral. Elas influenciam uma à outra, mas são essencialmente
diferentes. A liderança do presidente Lula amplia
muito o apelo eleitoral da esquerda, para além do progressismo. A memória das
melhorias econômicas passadas faz com que parte do eleitorado conservador vote
em Lula. Quando o presidente finalmente deixar o jogo eleitoral, deveremos ver
com mais frequência o antagonismo eleitoral entre elites urbanas escolarizadas
e o povo comum, a que assistimos nas eleições municipais do Rio e de São Paulo,
com Marcelo Freixo e Guilherme Boulos. Apesar disso, sempre que a esquerda
apelar para o discurso da proteção social, poderá equilibrar o jogo eleitoral.
Há ainda muito a estudar, mas os resultados
iniciais impõem uma agenda. Nosso desafio é dar visibilidade à maioria
silenciosa, ainda não polarizada, e resgatar o espaço dos consensos possíveis,
abafados pelo barulho das margens. Se não conseguirmos desarmar o antagonismo
afetivo entre esses pequenos grupos, corremos o risco de assistir a uma espiral
crescente de hostilidade que pode precipitar o país na violência política — ou
na ruptura institucional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário