Em memória de W. E. B. Du Bois (1868-1963)
Ocasionalmente, livros com temas improváveis se revelam fascinantes, rompendo barreiras temáticas e explorando regiões raramente investigadas. Leo Spitzer escreveu uma obra assim. À primeira vista, suas histórias familiares da Áustria, Brasil e Serra Leoa pareceriam desconexas. Os progenitores eram pessoas modestas, nascidas no judaísmo e em sociedades embebidas na escravidão. As gerações posteriores lutaram para alcançar a respeitabilidade, apenas para encontrar outros obstáculos à mobilidade sociocultural. No entanto, viveram em mundos marcadamente diferentes, e suas trajetórias nunca se cruzariam. Quem imaginaria que uma história conectada pudesse emergir dessas vidas díspares?
Leo Spitzer aborda com ousadia processos
universais — a assimilação de povos subordinados em sociedades dominantes e a
difícil situação dos indivíduos forçados a se adaptar — que existem em todos os
lugares onde nós nos reunimos. A gama completa de tais experiências não
poderiam ser captadas com uma pesquisa, uma biografia, um estudo de um único
país ou uma abordagem institucional, porque as interações mais dramáticas entre
povos e culturas na era moderna abrangeram continentes e levaram gerações para
se concretizarem. Um exercício que Norbert Elias (1897-1990) fará no posfácio
de Os estabelecidos e os outsiders: Sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade. No entanto, onde muitos poderiam ter
concluído que a história, embora importante, não poderia ser pesquisada,
Spitzer mergulha em um estudo multicultural e multidisciplinar que não apenas
obtém sucesso, mas também oferece inspiração a outros de nós que sempre estamos
dispostos a enfrentar e quando possível subverter os limites metodológicos
comumente aceitos. Este é um trabalho verdadeiramente estimulante.
As três famílias que Leo Spitzer acompanha
acabaram gerando figuras proeminentes, pessoas que marcaram a história
registrada: André Rebouças (1838-1898), Cornelius May (1857-1929) e Stefan
Zweig (1881-1942). O primeiro um renomado engenheiro e abolicionista no Brasil,
o segundo prefeito de Freetown, Serra Leoa e o terceiro um escritor best-seller
na Europa. Por um tempo, esses homens viveram sob os holofotes, aparentemente
capazes de superar preconceitos contra seu povo (judeus e negros). Tornaram-se
faróis de esperança.
O liberalismo encapuzado nas argutas palavras
de Florestan Fernandes (1920-1995) do século XIX e início do século XX
encorajou membros talentosos e criativos de grupos subalternos a ponto de eles
e elas verem as velhas barreiras caírem. Os preconceitos religiosos e raciais
pareciam ser vícios do passado. As pessoas da modernidade certamente julgavam
os outros por suas qualidades intrínsecas. Então, tragicamente, a reação se
instalou. Esses três homens — figuras admiráveis em sua própria vida — foram
reduzidos a pó pelas terríveis forças da intolerância, preconceitos, racismo e
antissemitismo. Zweig cometeu suicídio enquanto estava exilado da Áustria
controlada pelos nazistas em Petrópolis (RJ), Rebouças provavelmente cometeu
suicídio enquanto estava exilado em Funchal, na Ilha da Madeira. E May pereceu
na prisão, debilitado em espírito e saúde por alegações de corrupção. Suas
catástrofes individuais foram intensificadas pelas alturas que eles e suas
famílias haviam escalado.
Este livro possui uma qualidade assombrosa
que aumenta seu apelo. Leo Spitzer explica que sua própria família, aparentada
com os Zweig, vivenciou também as forças diaspóricas que ainda impulsionam a
história. Spitzer encontrou material biográfico e de arquivo suficiente para
iluminar a vida das gerações posteriores dos Zweig, Rebouças e May, criando uma
espécie de biografia coletiva. As leitoras e leitores tenderam a se identificar
com essas famílias e esperar que suas aspirações cidadãs sejam realizadas, apenas
para vê-las anuladas pelas forças do racismo, do antissemitismo, da
intolerância e do preconceito. Notavelmente, as diferenças entre judeus
(europeus e/ou não), africanos (coloniais e/ou não) apesar de existirem, não
são tão grandes que não possamos imaginar todos e todas passando por
experiências semelhantes. Em última análise, o livro funciona como uma boa
biografia de coletividades, induzindo as leitoras e leitores a verem o mundo do
ponto de vista dos comuns e, assim, a compartilhar a nossa história.
Em seções intercaladas ao longo do texto, Leo
Spitzer discute a literatura sociológica sobre assimilação e as bases
psicológicas da marginalidade. Embora cruciais para a análise, essas passagens
das ciências sociais não conseguiram o élan necessário para a sua convivência
na narrativa. Fora isso, a escrita é clara e direta.
Este estudo envolveu pesquisas nos Estados
Unidos, Europa, África e Brasil, buscando as línguas desses lugares e os
contextos específicos planetários. As lacunas no material são preenchidas com o
uso criterioso da imaginação histórica. Leo Spitzer merece nossa admiração não
apenas por conceber uma história tão ampla e multifacetada, mas também por
realmente concretizá-la. Ao romper com as formas usuais, este livro desafia a
todos nós a sermos mais comparativos e universais em nossa busca pela nossa
condição comum.
*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho
Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE,
da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.
Livro resenhado: Spitzer, Leo. Racismo e
antissemitismo: As trajetórias de Stefan Zweig, André Rebouças e Joseph May.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. 408 págs.
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