Folha de S. Paulo
Disseminou-se a ideia equivocada que a
corrupção se concentra em transferências a localidades interioranas do Brasil
arcaico onde os controles são débeis
A Constituição de
1946 determinou que, pela primeira vez, 10% do Imposto
de Renda fosse distribuído aos municípios, exceto os das capitais. Foi
a primeira versão do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
O pai da proposta, o deputado pernambucano Barros Carvalho, criticou aqueles
que afirmavam que "os prefeitos iriam enfiar aquela verba no próprio
bolso". Argumentou: "É possível que alguns bandidos e aventureiros se
apossem também do dinheiro da quota federal. Será um mal, mas um mal menor do
que o abandono em que União deixa o interior do país. (...) Se roubarem hoje a
quota federal, ainda assim o dinheiro vai fazer uma redistribuição regional da
renda, vai ficar na região, o prefeito ladrão acaba sempre montando uma
descaroçadeira de algodão ou uma olaria, e construindo uma estrada ou um açude
para sua fazenda".
Barros Carvalho, ao mesmo tempo que parecia
apontar o "rouba, mas faz" e o chamado "trickle down"
(respingamento do desenvolvimento), também se referia a um dilema de ação
coletiva: se as outras regiões estavam se beneficiando da corrupção,
melhor que todos também o fizessem.
Ele era otimista e há alguma evidência de que
seu argumento tenha um grão de verdade; conjeturava que a melhoria local
engendraria os controles democráticos: "vai melhorar a qualidade de vida
do lugar e das pessoas, que um dia saberão fiscalizar os políticos
ladrões." O dilema é universal como reconciliar equidade territorial com
controle e eficiência.
As transferências passaram a 15%, em 1961, e ampliaram-se os impostos
transferidos; em 1966 e 1993 chegaram a 23%. As transferências discricionárias
multiplicaram-se e hoje se concentram nas emendas orçamentárias que respondem
por mais de 1/3 do gasto discricionário.
Mas ao lado da corrupção local,
municipalizada, existe a "federal". Antônio
Callado, em "Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco"
(1960), livro-reportagem que virou best-seller, observou que em todo o Nordeste
"federal" é sinônimo de coisa grande, fabulosa. E completou: "A
algum dicionarista interessado em apurar a origem dessa gíria sugiro que a
fonte são os feitos do DNOCS, são os colossais açudes, as estradas e os
escândalos".
O grande escândalo, mesmo territorialmente
delimitado, é "federal". Utilizo federal aqui, no entanto, também em
outro sentido, complementar devido à escala, para aquele em que os
protagonistas estão no Executivo federal como o Petrolão e
agora o Descontão do INSS, no qual as cifras podem chegar a R$ 90
bilhões.
Disseminou-se a ideia —que não é desinteressada— que a corrupção se manifesta
sobretudo em transferências a localidades interioranas do Brasil arcaico, onde
os controles são débeis. Nada mais longe da verdade. Essa é apenas uma das suas
manifestações.
O controle imaginado por Barros Carvalho, que viria com o desenvolvimento econômico, nunca foi efetivo aqui. Houve avanço, sim, mas sofreu enorme retrocesso nos últimos anos. A estrutura de incentivos passou a ser "liberou geral". E não podia ser diferente após a anulação generalizada de evidências da Lava Jato, e o foco deslocado para as questões da democracia. Paradoxalmente, a defesa desta tem perversamente cumprido o papel de enfraquecer o controle da corrupção.
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