O Estado de S. Paulo
O descompasso entre o mundo amplo da economia
e o âmbito estritamente nacional da política terminou por produzir seus frutos
daninhos na forma de uma imensa crise da globalização
Não importam muito nossa condição de Ocidente
periférico, de “outro Ocidente” ou, ainda, a ideia mais forte de que
metabolizamos, com expressividade, o barroco ibérico e terminamos por produzir,
com ameríndios e negros, uma modernidade alternativa – o fato é que, seja como
for, temos sido assediados por perguntas estrategicamente decisivas sobre a
nova estrutura do mundo ainda em formação e, nela, a posição do Brasil.
O século 21, tudo indica, não será mais predominantemente norte-americano e menos ainda europeu. Com velocidade surpreendente, envelheceu a ideia de uma modernidade baseada na expansão contínua da mercantilização de todas as coisas e de todas as relações humanas. Já podemos dizer com certeza que a modernidade dita neoliberal, que se disseminou com o colapso do socialismo de Estado, pecou por déficit crescentemente intolerável de imaginação política. A interdependência entre os sistemas econômicos deu muitíssimos passos à frente, com a circulação instantânea do dinheiro, a mundialização das cadeias de valor, a mobilidade intensa de mercadorias e pessoas. E uma vasta classe média global, apesar das desigualdades, apareceu no cenário.
Tornamo-nos, existencialmente,
interdependentes até mesmo num sentido particularmente negativo, com a crise –
inédita e crescente – das relações com a natureza, a disseminação de armas
nucleares e a possibilidade de aplicação da inteligência artificial aos
conflitos armados. De nenhum desses possíveis desastres, como é óbvio, estará a
salvo qualquer povo eleito ou nação excepcional. Sem política, e deixado a si
mesmo, esse movimento das coisas pareceu, e parece, dotado de uma inquietante
autonomia, acontecendo fantasmagoricamente acima da consciência e da ação
coletiva.
Sempre se soube que a unidade tendencial do
gênero humano, este belo sonho multissecular, não se daria como um processo
automático e sem turbulência, ainda que a complexidade das situações
recorrentemente nos espante. O descompasso entre o mundo amplo da economia e o
âmbito estritamente nacional da política terminou por produzir seus frutos
daninhos na forma de uma imensa crise da globalização.
Mesmo os Estados Unidos – o irônico “Leviatã
liberal” das últimas oito décadas – vêm de rejeitar, ou não mais podem cumprir,
sua função hegemônica, abdicando do soft power e passando a afirmar seus
interesses de forma bruta, insolente e imediata. É raro que um chefe de Estado
moderno, como Trump, logo no discurso de posse proclame o projeto da expansão
territorial, passando por cima das duras lições do século 20 – o século
norte-americano por excelência.
Num livro extraordinariamente útil para
reenquadrar todo esse conjunto de problemas ( Sinfonia Barroca: O Brasil que o
povo inventou, Ateliê de Humanidades, 2025), Rubem Barboza Filho vê em torno de
nós um mundo agarrado a “regimes de eternidade”, com escassa capacidade de
propor uma ideia compartilhada e universalista de futuro. A Rússia de Putin –
metamorfose desfigurada da URSS, antagonista a seu tempo da ordem
liberal-democrática – tenta desesperadamente restaurar a era dos czares, da
ortodoxia religiosa e do stalinismo, reafirmando um império territorial avesso
aos direitos civis e à democracia política. Estes últimos, direitos e
democracia, seriam meros disfarces de um Ocidente decrépito, com cujo apoio
ilegítimo renasce uma nação, a Ucrânia, que não deveria sequer existir.
Outro colosso, a Índia de Narendra Modi,
instaura a própria versão paradoxal de um tempo imóvel, que não passa. Sobre o
dinamismo econômico, a mobilidade social e a desigualdade milenar, recai a capa
de chumbo da tradição védica em que não há lugar, entre outros, para os
muçulmanos minoritários. Em diapasão semelhante, a globalização à moda chinesa
expande-se economicamente mundo afora com um vigor sem paralelo.
À produção incessante de mercadorias
seguem-se, como num automatismo, as rotas de escoamento, as ferrovias, os
portos e aeroportos em múltiplos continentes, a belt and road initiative. Os
chineses, contudo, não fogem ao seu regime de eternidade, que supõe a
continuidade longa entre confucionismo e marxismo oriental. A obediência
política, de que não é possível fugir num Estado de vigilância total,
combina-se com os hábitos de uma classe média que acumula, consome e se cala.
Neste horizonte de crise generalizada do
futuro, também temos sido relativamente incapazes de propor nosso próprio
regime, não de eternidade, mas de historicidade, ao mesmo tempo fiel ao
“instinto de nacionalidade” e ao ideal cosmopolita dos modernos. Retomamos há
40 anos a saga da democracia – esse bem inestimável que só os enamorados do
obscurantismo supõem inferior às vistosas autocracias de partido único ou
merecedor dos ataques subversivos dos autocratas em germe. Ainda não soubemos
associar, com firmeza e decisão, democracia política e democratização social,
liberdade individual e liberdade de todos. No entanto, só essa associação, e
nenhuma outra, descreve com precisão nosso desafio: Rhodes é aqui, é aqui que
devemos saltar.
*Tradutor e ensaísta, coeditor das ‘obras’ de Gramsci no Brasil
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